OS SERVOS DE MARIA NO BRASIL
(Texto extraído do livro “Os Servos de Maria no Brasil” de Frei Dilermando M. Ramos Vieira, OSM, traduzido para o Português, por Fr. José M. Milanez, osm, Do original inédito em língua italiana DILERMANDO RAMOS VIEIRA, La Provincia OSM del Brasile, in La Storia dei Servi di Maria in America Latina, Roma 2008). Proibida a reprodução sem prévia autorização do autor.
A jurisdição OSM do Brasil percorreu um caminho diferente das outras jurisdições da América Hispânica. Essas diferenças manifestam-se principalmente em três aspectos. O primeiro é que, ao contrário das outras fundações, todas confiadas aos vênetos – com exceção de duas breves experiências: uma da Província Piemontesa na Argentina, e a outra da Província Romana na Venezuela e Colômbia -, o Brasil foi entregue à Província da Romanhola. O segundo aspecto refere-se à população que, além do fato importante de não ter uma matriz cultural e lingüística espanhola como os vizinhos, o Brasil difere deles também devido à outra realidade evidente: enquanto em muitos países hispânicos a componente indígena era e é importantíssima, entre os brasileiros, os remanescentes nativos não são mais do que um miserável 0,4%. Para evidenciar ainda mais a especificidade étnica, o percentual de negros e, principalmente, de mulatos, pouco relevante na maior parte dos países hispânicos, no Brasil ultrapassa o 40% de toda a população. A própria geografia se tornou um fator de distanciamento, porque as fronteiras cobertas de densas florestas, até um passado recente, dificultavam enormemente as comunicações.[1]
A isso se acrescentaram as opções políticas contrastantes feitas nos dois “pulmões” da América Latina. Ao contrário da região hispânica que, depois de uma sangrenta guerra de independência, se desagregou em várias repúblicas, o Brasil emancipou-se quase sem conflito aos 7 de setembro de 1822, tornando-se em seguida uma monarquia centralizada, governada por uma dinastia verdadeira (dos Bragança), zelosa de suas relações de nobreza com os tronos europeus, que conseguiu manter intatas as fronteiras nacionais.[2]
A terceira diferença, mais específica, refere-se à história religiosa nacional. Devido ao decreto imperial de 19-5-1855, que proibiu a todos os regulares de aceitarem novos noviços,[3] a quase totalidade deles só se estabeleceu no Brasil depois da proclamação da República, e da conseqüente declaração de Estado Laico aos 7-1-1890.[4]
Essa mudança coincidiu com outro fato histórico de grande importância: a imigração maciça de europeus que, em poucas décadas, mudou a identidade étnica nacional. As marcas deixadas por essa transformação foram enormes. Dentre elas, não se pode deixar de destacar principalmente duas. Primeira, as novas devoções trazidas da Europa, em muitos lugares, suplantaram as devoções do passado colonial e imperial. O fenômeno impôs-se de maneira tão brutal que não faltaram até igrejas dedicadas à… Virgem de Achiropita! Segunda, mais visível ainda, foi a transformação sob o aspecto dos religiosos.
Em 1889, das antigas Ordens regulares sobraram só os Beneditinos, os Franciscanos Alcantarinos e os Carmelitas. Todos os seus membros eram idosos e, por isso, esses institutos também foram “refundados” por europeus provenientes da França, da Espanha, da Alemanha e da Itália. O fato mais deplorável foi que tanto os institutos religiosos “refundados” quanto as centenas de Ordens e Congregações recém-chegadas adotaram a norma geral, em vigor até os anos cinqüenta, de recusar sistematicamente negros e mestiços. Em alguns casos, chegou-se ao extremo de admitir somente filhos de imigrantes europeus.[5]
Esse preconceito foi superado, mas deixou um legado incômodo: em muitas Ordens religiosas, inclusive na dos Servos de Maria, o número de professos não brancos ficou abaixo da média nacional. Acrescente-se que as vicissitudes históricas por longo tempo levaram a nação brasileira a privilegiar as relações com a Europa e os Estados Unidos, e esse foi um motivo a mais para que os filhos da América “portuguesa” mantivessem até os dias de hoje a convicção de serem “ocidentais”.
Apesar disso, certos segmentos da política, do clero e da intelectualidade esforçam-se para estabelecer relações com o mundo hispânico. Por outro lado, é preciso ver com cautela a imagem estereotipada que se tem do Brasil. É verdade que são numerosos os problemas sociais que assolam o país, mas é sem dúvida redutiva a visão do europeu que, depois de chegar a uma grande metrópole do país, como São Paulo, procura logo uma “favela”; e, ignorando todos os outros aspectos da cidade que continua sendo uma das maiores megalópoles do planeta, põe em destaque quase exclusivamente a sorte “daquela pobre gente…”[6]
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A questão do Acre: um território boliviano feito brasileiro
Antes que os Servos de Maria chegassem ao Brasil, a imigração italiana do país começou a atrair a atenção da Ordem, também porque, os que partiam mantinham suas devoções, inclusive as que eram ligadas à espiritualidade servita. Em 1-8-1914, a revista mensal La Madonna di Monte Berico, publicou um artigo sobre a presença dos imigrantes vênetos estabelecidos na cidade gaúcha de Caxias do Sul, onde tinham construído uma igreja dedicada à Virgem de Monte Bérico, descrita pelos colonos, com exagero, como sendo “a mais bonita de todas as existentes no Rio Grande do Sul”.[7]
É possível que, a exemplo de outros religiosos, os Servos de Maria tenham considerado a possibilidade de trabalhar com os italianos residentes no Brasil, mas a conjuntura sócio-eclesial do país reservava-lhes um destino bem diferente: a região do Acre e Purus, situada a noroeste da Amazônia. As motivações dessa escolha, porém, se encontram no século XIX e está ligada à descoberta do uso industrial da borracha, extraída da seringueira (Hevea brasiliensis).
A nova fonte de riqueza levou muitos aventureiros, em boa parte provenientes do árido Estado do Ceará, a buscar a sorte na Amazônia. Penetrando sempre mais floresta adentro, em busca de novos seringais, acabaram por ultrapassar a fronteira boliviana. Em 14-7-1899, um dos grupos de seringueiros comandados pelo espanhol de Cádiz, Luís Galvez Rodríguez de Arias (1864-1935), reuniu-se no seringal Volta da Empresa, perto de Puerto Alonso, e proclamou a independência da região. O Governo da Bolívia apelou para o Brasil, pedindo que fosse respeitado o Tratado de Ayacucho, assinado pelos dois países aos 27-3-1867, o qual reconhecia o Acre como possessão boliviana, e foi atendido.O governo brasileiro enviou uma expedição militar composta por quatro navios de guerra, mais tropas de infantaria para pôr um termo à situação. No dia 11 de março de 1900, Luiz Galvez teve de se render na sede do seringal Caquetá, às margens do rio Acre, sendo em seguida preso e deportado para a Espanha.[8]
Aconteceu, porém, que o crescimento vertiginoso da indústria de automóveis exigia uma constante produção de matéria prima e, em apenas um ano – 1901 – as florestas acreanas forneceram 47.000 toneladas de borracha, correspondentes a 60% de toda a produção amazônica. O afluxo de brasileiros cresceu a olhos vistos.
A Bolívia então arrendou toda a região ao Bolivian Syndicate, uma companhia de capital norte-americano, inglês e alemão que, além do direito de extrair o látex, era também encarregada de manter “a ordem interna” local. Os brasileiros reagiram, e uma rebelião comandada por José Plácido de Castro (1873-1908) garantiu-lhes o controle do território disputado. A nova situação fez o Governo Brasileiro mudar de tática: primeiro, resolveu a pendência com o Bolivian Syndicate, o qual, depois de ter recebido uma consistente compensação financeira de 114.000 libras, desistiu do seu projeto; depois, partiu para o entendimento diplomático com a Bolívia, que aceitou negociar.[9]
Para isso foram nomeados como representantes brasileiros José Maria da Silva Paranhos Júnior, Barão de Rio Branco (1845-1912), então Ministro das Relações Exteriores, e Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938). Do lado boliviano, Fernando Eloy Guachalla e Cláudio Pinilla. Por fim, em 17-11-1903, foi assinado o Tratado de Petrópolis,[10] com o qual a Bolívia cedeu o Acre ao Brasil em troca do pagamento de 2.000.000,00 de libras, além do compromisso do Governo Brasileiro de construir, no território situado além dos limites do Acre, uma ferrovia que ligasse o Porto de Santo Antônio, no rio Madeira, a vila de Guajará-Mirim, no rio Mamoré, com um ramal que chegasse a Villa Bella (Bolívia) na confluência do rio Bêni com o Mamoré.[11]
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Entrega da missão da Amazônia à Província Picena
A questão política logo provocou um problema religioso, porque fez-se necessário definir a quem tocaria a cura de almas da região: se a um bispo brasileiro ou a um prelado boliviano. Por isso, antes que fosse assinado o Tratado de Petrópolis, o Secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Mariano Rampolla del Tindaro (1843-1913), em 1-5-1902, escreveu ao Delegado Apostólico da região andina, Alexandre Bavona (1856-1912), então residente em Lima, Peru, pedindo-lhe informações. A carta mostra que o cardeal estava pouco informado sobre a situação real do momento histórico em curso, pois, a certa altura, afirmava: “Aquele território, que agora passou sob o domínio da Bolívia, seja anexado à diocese de Santa Cruz de La Sierra, ou então de La Paz…”[12]
O Delegado Apostólico, por sua vez, em 28 de junho seguinte, pediu o parecer do bispo de Santa Cruz de la Sierra, Dom José Belisário Santistevan (1843-1931), o qual, citando tratados diplomáticos precedentes e dados jurídicos, respondeu afirmando que o Acre foi e era “totalmente boliviano”.[13]
Os fatos, porém, como vimos antes, impuseram outra realidade. Mas, quando Dom José Lourenço da Costa Aguiar (1847-1905), titular da diocese de Manaus, no Estado do Amazonas (erigida em 1893), viu-se de fato e de direito responsável do território acreano, deu-se conta da delicadeza da situação pastoral vigente. A solução que encontrou foi criar ali duas prelazias – Alto Acre e Purus e Alto Juruá – entregues a religiosos. A Congregação dos Negócios Eclesiásticos era favorável a esta iniciativa, mas recebeu resposta negativa dos Capuchinhos holandeses (4-8-1905), dos Oblatos de Maria Imaculada (3-10-1905), e também dos Redentoristas (18-10-1905).[14]
E assim, a situação religiosa do Acre e Purus continuou inalterada. O clero não estava totalmente ausente, porque o Pe. Francisco Leite Barbosa (pároco da paróquia Nossa Senhora de Nazaré, de Lábrea, de 1887 a 1915), sozinho, por quase 33 anos, atendeu como pôde os fiéis da região. Na tentativa de dar uma solução parcial ao problema, o segundo bispo de Manaus, Dom Frederico Benício de Souza Costa (1876-1948), em 1908 nomeou o Pe. Francisco vigário forâneo daquela região, e dois anos mais tarde foi pessoalmente ao Acre para explicar a situação aos fiéis de Sena Madureira.[15] Nessa visita, em 5-3-1910, desmembrou da paróquia de Lábrea quatro novas paróquias: São Sebastião, situada na foz do rio Antimary, e Rio Branco, ambas tendo como pároco o italiano Pe. José Tito (1910-1920); São Sebastião de Xapuri, no Alto Acre, para onde foi o Pe. Benedito de Araújo Lima (1910-1913), e depois o Pe. Joaquim Franklin Gondin (1914-1919); e Sena Madureira, na margem esquerda do rio Yaco, onde foi nomeado pároco o Pe. Antônio Fernandes da Silva Távora (1910-1915).[16]
Nem assim chegou-se a um resultado satisfatório: Pe. Antonio Távora morreu aos 13-9-1915; Pe. Benedito, devido à sua conduta irregular, foi suspenso alguns anos depois; no fim das contas, no Acre sobrou só o Pe. José Tito. As perspectivas mudaram a partir de 16-4-1916, com a nomeação do novo prelado de Manaus, Dom João Irineu Joffily (1878-1950). Ele tomou posse aos 3 de dezembro, e revelou toda sua habilidade, reavivando o espírito religioso do povo e melhorando a administração diocesana. Desta forma, criada a Prelazia do Alto Rio Negro, desmembrada anteriormente (1910) e entregue aos Salesianos em 1914, seguiram-se as Prelazias de Porto Velho, erigida em 1925 e entregue à mesma Congregação, e Lábrea, assumida no mesmo ano pelos Agostinianos Recoletos. O Acre foi outra das metas alcançadas.[17]
O rebanho a apascentar compunha-se de uma população escassa e dispersa ao longo dos rios, na floresta natural das seringueiras (os seringais) e em terra firme, isto é, em terrenos ligeiramente ondulados, onde não chegavam as inundações. A parte referente ao Acre e Purus foi descrita mais tarde por Dom Próspero Bernardi nestes termos:
Sua extensão territorial é de 40 Km2 no rio Acre e de 30.000 Km2 no rio Purus. A população civil, segundo o censo de 1920, era a seguinte: no município de Sena Madureira (Purus) 21.141; no município de Rio Branco (Acre) 19.930; no município de Xapuri (Acre) 15.397; ao todo: 56.468 [habitantes].[18]
O aspecto mais grave era que esse imenso território contava só com um padre, o Pe. José Tito.[19] A outra metade do Acre, porém, isto é, a região do Alto Juruá e Alto Tarauacá, em 1912, começou a ser atendida pelos padres Espiritanos. Em 1931 essa jurisdição eclesiástica receberia o nome de Prelazia de Cruzeiro do Sul. Enquanto isso, a região do Alto Acre e Alto Purus continuava abandonada.
A Sagrada Congregação Consistorial (Dicastério da Cúria Romana encarregado da criação de novas dioceses e da nomeação dos bispos), decidiu pedir aos Servos de Maria que aceitassem essa missão. Frei Aleixo Henrique Maria Lépicier (1863-1936), Prior Geral de 1913 a 1920, fora nomeado consultor da referida Congregação em 3-12-1912, e não ficou indiferente ao pedido. Por isso, em 22-5-1919, convocou os seus consultores, frei José Lucchesi (1853-1923), frei Agostinho Sartori (1869-1928) e frei Joaquim Dourche (1864-1931), para estudar o pedido. Apesar da ausência de frei Joaquim Dourche, a proposta foi acolhida favoravelmente. Em seguida, em 3 de outubro, a Congregação comunicou ao prelado de Manaus que o papa Bento XV aprovara a criação da nova jurisdição prelatícia. Além disso, garantiu: “Os Servos de Maria aceitaram de bom grado a missão e a prelazia e estão agora fazendo os preparativos necessários”.[20]
A bula papal Ecclesiae universae regimen, confirmando o desmembramento do território da diocese de Manaus, foi publicada no dia seguinte (4-10-1919). Em seguida, em 15 de dezembro, o mesmo papa, com outra bula intitulada Commissum humilitati nostrae, cujo texto teve a assinatura do cardeal protetor da Ordem, Otávio Caggiano de Azevedo (1845-1927), nomeou o bispo prelado na pessoa de Dom Próspero Gustavo Bernardi (1870-1944), titular de Palto.[21]
Alguns anos depois da tomada de posse, Dom Próspero pediu e obteve que a prelazia fosse rebatizada com o nome de “Prelazia Nullius de São Peregrino no Alto Acre e Purus”. O decreto papal, emanado pela Sagrada Congregação Consistorial e assinado pelo cardeal Caetano De Lai (1853-1928), foi aprovado em 10-12-1926 e imediatamente enviado ao encarregado dos negócios da Santa Sé no Brasil, Dom Egídio Lari, que comunicou a decisão ao bispo prelado.[22]
Um detalhe deve ser destacado: a prelazia entregue à Ordem nunca esteve sob a jurisdição da Congregação de Propaganda Fide, mas da Sagrada Congregação Consistorial.[23] O Prior Geral Lépicier pediu à Província Picena (que mais tarde se chamaria Província da Romanha) para assumir a prelazia. O Prior Provincial, frei Luís Tabanelli (1874-1943), consultou os membros do seu conselho para ouvir seu parecer. Todos, isto é, frei José Albarelli (vice-provincial), frei Amadeu Tinti, frei Afonso Sensoli, frei Francisco Borri e frei Amadeu Brugnoli, declararam-se favoráveis. Com o parecer deles em mãos, em 20-1-1920, frei Luís comunicou ao Prior Geral: “O abaixo-assinado declara que é plenamente favorável à aceitação da Missão Brasileira por parte da Província Picena”.[24]
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Chegada dos Servos de Maria ao Acre e os eventos que seguiram
No dia seguinte à aceitação, isto é, em 21-1-1920, foi feita a entrega oficial da Prelazia à Província Picena. Domingo 1-1-1920, Dom Próspero Gustavo Bernardi foi sagrado bispo na igreja de Santa Maria in Via, em Roma, pelo cardeal Amadeu Ranuzzi de Bianchi (1857-1927), terciário da Ordem. Com os missionários que lhe foram designados, partiu de Bolonha[25] e, em 22-3-1920, embarcou para o Brasil no porto francês de Le Havre, a bordo do navio Anselm, ocupando a cabine 67. Os frades que o acompanhavam eram três: os presbíteros frei Tiago Mattioli (1887-1970) e frei Miguel Lorenzini (1887-1967), ambos naturais de Granaglione (Bolonha), e o irmão leigo frei Domingos Baggio (1879-1953), da Província Lombardo-Vêneta, proveniente de Monte Bérico.[26]
Depois das escalas em Leixões, Lisboa e Ilha da Madeira, dia 8 de abril chegaram a Belém, capital do Estado do Pará, onde foram recebidos pelo arcebispo diocesano e pelos Capuchinhos. Dois dias depois, tomaram outra embarcação com destino a Manaus, capital do vizinho Estado do Amazonas. As impressões registradas por frei Miguel Lorenzini não foram muito otimistas:
De Belém subimos o rio Amazonas, admirando a exuberante vegetação das margens, interrompida aqui e acolá pelos barracões, espécie de cabanas de terra e barro, cobertas de palhas, das quais saíam homens e mulheres mal vestidos e crianças nuas. Nunca teria pensado encontrar, perto de um centro como Belém, pessoas que levam uma vida quase selvagem! Disseram-nos que a maioria foi batizada e que, de vez em quando, passa por ali algum sacerdote, mas, pela falta de assistência regular, continuam numa grande ignorância religiosa, e sua vida moral deixa muito a desejar.[27]
O grupo chegou a Manaus dia 15 de abril. A esta altura, porém, a população acreana estava dividida por dois motivos: pela escolha da sede episcopal e pela escolha da capital civil do território. A disputa era energicamente mantida acesa por dois pequenos jornais locais, O Futuro, de Rio Branco, e O Jornal, de Sena Madureira. No final, Sena Madureira ficou como sede da prelazia, como estabelecia a bula papal, e Rio Branco tornou-se capital do território, como havia decidido o governo central do Rio de Janeiro.[28]
Os recém-chegados receberam toda assistência do bispo diocesano, o qual, além de oferecer-lhes hospitalidade por quase três meses, ajudou-os a aprender a língua portuguesa e forneceu informações importantes sobre a prelazia que deveriam assumir. Malgrado isso, o processo de adaptação foi deveras penoso, como registrou Dom Próspero:
Uma permanência forçada de três meses em Manaus, capital do Amazonas, foi suficiente para experimentar as primeiras dificuldades da vida missionária, e para medir a caridade benevolente de muitas pessoas. O calor desta zona tórrida, o tipo diferente de alimentação, a aplicação no estudo da nova língua, tudo isso concorreu para enfraquecer-nos, provocando em todos diminuição de forças e perda de peso: alguém chegou a perder até sete quilos.
Acrescente-se a isso o ataque de impaludismo, como aqui chamam a febre malárica, que provocou, em alguns, derrame biliar, e em outros, inchaço do fígado e outras moléstias. E até aqui não tínhamos ainda experimentado a picada dos carapanãs, dos piuns e dos mucuins, surpresas essas que nos esperavam mais tarde. Dir-se-ia que a cada hora do dia aparecia aqui uma nova moléstia.
Das 10 às 16 horas é preciso ter uma grande dose de boa vontade para poder fazer alguma coisa que exija aplicação. Superado o sofrimento do calor, eis que pelas 17 horas aparece um enxame de carapanãs, um tipo de mosquito que zune, pica e suga o sangue em todas as partes do corpo. Pelas 18 horas, o sol se põe, cessam o zunido e as picadas dos carapanãs, mas tomam seu lugar os piuns que picam e sugam mais que os outros.
Se mais tarde alguém quiser sair para a rua – e aqui precisa necessariamente sair, porque as igrejas estão longe das casas e as celebrações acontecem das 19 horas em diante -, é preciso tomar cuidado para não pisar na grama ou no capim verde porque lá se escondem os mucuins, outro inseto que não se satisfaz em sugar o sangue, mas se introduz sob a pele provocando uma coceira que é… uma delícia! Aí de quem não resiste ao estímulo de coçar: uma ferida é inevitável. Frei Domingos que o diga!
[…] Todavia, para compensar todas essas moléstias, está o outro lado da medalha, isto é, todas as demonstrações de caridade que nos foram prodigalizadas aqui.[29]
Superada essa primeira etapa, em 21-6-1920, enquanto Dom Próspero ficava mais algum tempo em Manaus, onde escreveu a sua primeira carta pastoral, os frades partiram com o vapor Tupy, da companhia Amazon River,com destino a Sena Madureira. Dia 6 de junho, quando chegaram à foz do rio Acre, o padre italiano, José Tito, os estava esperando, porque havia recebido ordens do bispo de Manaus para acompanhá-los até o seu destino. Dois dias depois, às 9 da manhã, chegaram. Uma multidão os recebeu com festa. Depois das saudações e de uma oração inicial, foram levados até sua residência provisória: uma humilde casa de madeira, com oito vãos, alguma mobília e, coisa pouco normal na época, com eletricidade em todas as dependências.[30]
O bispo chegou dia 11 de agosto e, quatro dias depois, tomou posse da prelazia, dando início a um novo capítulo da história missionária servita.[31]
3.1 – Fatos iniciais
A chegada dos Servos de Maria coincidiu com as grandes mudanças políticas em curso. Em 1-10-1920, fez-se mais uma reforma administrativa, a terceira, que suprimiu as quatro prefeituras já instituídas – Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá, erigidas em 1904, e Tarauacá, em 1912 -, que foram substituídas por um governo único, sediado em Rio Branco, escolhida como capital do território. O primeiro governador foi Epaminondas Jácome, que ocupou o cargo em 1921 e 1922, mas não se pode dizer que tal “solução” tenha agradado a muitos acreanos. Isso porque, ao contrário do que acontecia nos Estados da Federação, o governador do novo território não era eleito pelo voto popular, mas indicado pelo Presidente da República. O governador, por sua vez, nomeava os intendentes dos cinco municípios e os funcionários públicos.[32]
Sena Madureira era a cidadezinha mais evoluída do território. Tinha dois pequenos jornais e uma modesta linha de bondes puxados por muares. Mas a situação global que se oferecia aos frades recém-chegados não era nada rósea, nem sob o ponto de vista social, nem sob o ponto de vista eclesial. Os fiéis – uma exótica amálgama de migrantes nordestinos, aventureiros de todo tipo e alguns indígenas – tinham escassa formação doutrinal e viviam uma religiosidade sentimental, com muitas superstições e poucas exigências morais.[33] Malgrado isso, a cultura popular conservava, em grande parte, uma matriz cultural européia, como o próprio bispo teria admitido:
A Prelazia, a rigor, não é uma missão inter infideles, embora inclua algumas tribos indígenas. […] Ídolos e outros objetos de culto não há, à parte algumas crenças vulgares que se encontram também nos centros mais civilizados. […] Se quiséssemos ilustrar um pouco os costumes locais, diríamos que pouco diferem dos europeus na sua representação cultural.[34]
Totalmente diferente, sem dúvida, era o estilo de vida do clero. Por isso, quando chegaram, à parte a igreja decadente de madeira, construída em 1910, tendo ao lado a casa de madeira, ex-propriedade do juiz Jorge de Araújo, adquirida pelos fiéis para ser a morada do bispo diocesano, os frades e o prelado se deram conta que tudo devia ainda ser feito. Por exemplo, a casa em questão não tinha portas e as paredes eram cheias de frestas através das quais, de noite, entrava o vento, e de dia, as crianças vinham espiar o que o bispo estava fazendo.[35]
Sem perder o ânimo, logo ao chegar, os frades procuraram organizar-se: o bispo e frei Miguel Lorenzini, nomeado pároco, ficaram em Sena Madureira; frei Tiago Mattioli e o irmão Domingos Baggio se estabeleceram em Rio Branco aos 12-10-1920. No dia 28 do mês seguinte foi criada a paróquia, cuja igreja-matriz foi improvisada numa pequena construção de blocos de cimento existente na Rua do Comércio, adquirida graças à colaboração de uma comissão de senhoras que conseguiu arrecadar $ 7.927.000,00 réis. Mas os frades tiveram que construir outra ala para sediar a sacristia e o convento, que custou $ 11.391.400,00 réis.[36]
O prelado, por sua vez, iniciava suas longas viagens missionárias pelo território da prelazia, chegando até Assis Brasil, na divisa com a Bolívia e o Peru. Naturalmente, as condições de trabalho eram duríssimas. Por sorte, receberam uma grande ajuda financeira dos Estados Unidos. De fato, ainda em 1920, o Reverendo Mac. Glinchey, diretor da obra de Propaganda Fide em Boston, esteve em Roma, onde o Prior Geral da Ordem pediu-lhe encarecidamente que ajudasse a nova missão dos Servos de Maria. O diretor não se esqueceu do pedido e contribuiu com U$ 522.03 dólares, convertidos em $ 10.231,60 liras, que o Procurador da Ordem enviou para o Brasil, para cobrir as necessidades mais urgentes da missão.[37] O peso do trabalho era imenso, mas foi compensado pelos resultados obtidos. Sobre as atividades do frei Tiago Mattioli entre 1920 e 1924, assim se expressava Dom Próspero Bernardi:
Rio Branco é o campo de trabalho do frei Tiago Filipe Mattioli. Ele achou esta cidade um pouco menos democrática que as outras e, infelizmente, mais relaxada de todas em matéria de religião e de moralidade.
Apesar disso, saibam os leitores que ao chegar a Rio Branco, no prazo de vinte dias, improvisou uma igrejinha de blocos de cimento (de 7 x 14 metros), com um adequado decoro interior. Construiu-lhe um robusto campanário de alvenaria, cuja elegância só perde para a estabilidade.
Quem chega a Rio Branco, de longe percebe que lá mora um padre trabalhador. Frei Tiago Mattioli tem a alegria (e os benfeitores, o mérito) de possuir na igreja as melhores imagens que a Ordem tem aqui. Foi o primeiro a conseguir uma estátua de São Filipe Benizi, justamente invejada pelas outras casas, que não têm quase nada dos Santos da Ordem.
Embora se faça notar que ele teve que pagar um preço mais alto que todos os demais pela inclemência deste clima tropical, passando meses e meses sempre sozinho, lutando contra a febre, sofrendo e enfrentando a má índole de algumas pessoas, apesar disso, foi tão grande o trabalho que ele realizou que, brincando com seu duplo nome, poder-se-ia dizer que não foi um só, mas foram dois os sacerdotes que trabalharam em Rio Branco, isto é, frei Tiago e frei Filipe Mattioli.[38]
3.2 – Segunda expedição: novos frades, as Servas de Maria Reparadoras e os trabalhos realizados
Foi então preparada a segunda expedição de frades para a missão no Brasil. Uma vez que a passagem de Bolonha a Belém na classe econômica custava 7.000 liras por pessoa, frei José Albarelli, Prior Provincial em exercício, apelou aos leitores da revista Il Servo di Maria para que colaborassem.[39]
Estando tudo preparado, em 27-6-1921, na igreja de Santa Maria dos Servos de Bolonha, os escolhidos receberam o crucifixo de missionários das mãos do cardeal Ranuzzi. Eram quatro frades, sendo três presbíteros: frei Bonajunta Busi (1863-1936), que voltou para a Itália em 1924; frei Filipe Gallerani (1878-1965); frei Donato Gabrielli (1890-1936), transferido para o Rio de Janeiro em 1924; e o irmão leigo frei Egídio Muscini (1884-1976).[40] Junto com eles, vieram também seis Servas de Maria Reparadoras.
A idéia de trazer as irmãs para a missão da Amazônia partiu de Dom Próspero, antes mesmo de sua sagração episcopal. Ele o fez informalmente pela primeira vez em 1919, quando entrou em contato com a Madre Geral das Servas de Maria Manteladas de Pistóia, irmã Antonina Chinotto (1866-1959). Depois disso, dirigiu-se ao Prior Geral, frei Luís Tabanelli, para que fizesse um pedido formal. E o Prior Geral o fez em 6-11-1920, mas, em 28-11-1920, a Priora Geral respondeu negativamente, porque a Congregação já havia assumido o compromisso de ir para a Suazilândia, na África do Sul. De fato, em 5-12-1922, as primeiras quatro irmãs chegaram à missão de São José, onde foram recebidas por frei Peregrino Bellezze e seus confrades.
Diante disso, frei Tabanelli encarregou frei José Albarelli de iniciar tratativas com a Priora Geral (e fundadora) das Servas de Maria Reparadoras, Madre Elisa Andreoli (1861-1935), que se encontrava em Ádria, Província de Rovigo, na região vêneta. As Reparadoras tinham certa experiência com situações difíceis, porque algumas delas haviam trabalhado em hospitais militares, dando assistência a soldados convalescentes de ferimentos sofridos na Primeira Guerra Mundial. Mas nenhuma delas tinha saído de sua pátria. Por isso, antes de decidir, a Madre enviou carta a todas as coirmãs para ouvir seu parecer. Com muitas respostas favoráveis em mãos, Madre Elisa foi convencida a aceitar a proposta missionária na Amazônia. Sendo que a Congregação ainda era de direito diocesano, antes pediu a aprovação do bispo, Dom Anselmo Rizzi (1874-1934). Obtido o parecer favorável em 9-2-1921, escreveu ao Prior Geral dos Servos de Maria dizendo que a Congregação se dispunha a assumir a missão. Seis foram as irmãs escolhidas: a priora, irmã Maria Constantina Gian (1892-1979), e as coirmãs Maria Mercedes Andreello (1893-1974), irmã Maria Margarida Dametto (1890-1977), irmã Maria Rosária Vettorato (1897-1986), a qual, depois de voltar para a Itália, saiu da Congregação em 23-5-1952, irmã Maria Ester Bressan (1896-1979) e Maria Peregrina Franceschi (1890-1986), postulante já admitida ao noviciado pela Priora Geral e seu Conselho. Alegre pela aceitação das irmãs, o Prior Geral, frei Luís Tabanelli, afirmou: “Creio que Deus retribuirá com copiosos favores a esta Congregação, fazendo-a crescer em seu espírito e multiplicando o número de seus membros”.[41]
As seis irmãs partiram de Bolonha em 27-6-1921, embarcaram no navio em Gênova e aportaram em Londres, onde, de 2 a 12 de julho, foram hóspedes das Servas de Maria de Londres. Dia 12, partiram de Newport a bordo do navio Alban, da companhia Booth Line, rumo ao Novo Mundo. Chegaram a Belém em 7 de agosto e, depois de dois dias no convento das irmãs Dorotéias, retomaram a viagem. Dia 20 do mesmo mês, desembarcaram em Manaus, onde permaneceram até outubro, estudando a língua portuguesa. Finalmente, fizeram o último trecho da viagem e chegaram a Sena Madureira em 14-11-1921.[42]
No começo, as irmãs Reparadoras ficaram alojadas numa casa cedida pela Sra. Idalina Fernandes da Silva Távora, irmã do primeiro pároco, e em seguida, numa outra casa de propriedade do juiz Dr. João Virgulino de Alencar, que viajou logo depois para Manaus. Em 7-9-1922, começaram a trabalhar num educandário propriamente dito (o Colégio Santa Juliana), apesar da situação difícil em que se encontrava: tinha sete alunas apenas, e só nos três anos seguintes seu número aumentou para 32, depois 40, e por fim 50.[43] Tudo era improvisado. A casa tinha espaços reduzidos. Para as aulas, se o tempo era bom, utilizava-se o pátio à sombra de alguma árvore; e se o tempo era chuvoso, recorria-se à capela, onde estava sepultado o primeiro pároco de Sena Madureira, Pe. Fernando da Silva Távora.[44]
As meninas e as jovens inscritas, além de ler e escrever, aprendiam também a costurar e bordar e a conhecer o evangelho,[45], ou melhor, o Catecismo de Pio X. Aconteceu, porém, que o dono da casa que as hospedava, tinha uma vida muito irregular, e quando, depois de um ano em Manaus, voltou para Sena Madureira, os padres não o aceitaram como padrinho de batismo. Ele então pediu às irmãs que lhe devolvessem o imóvel, e elas tiveram que mudar-se para uma casa pobre, coberta de palha, próxima ao local onde hoje está a igreja matriz.
Em 2-5-1927, na festa São Peregrino, as irmãs viveram dois bons momentos: a primeira religiosa acreana, Bernardina da Assunção (1903-1985), nascida em Sena Madureira, emitiu os votos simples, e na mesma data, num terreno doado pela prefeitura, entre a Rua Iaco, a Avenida Brasil e outras duas ruas chamadas Macauã e Carioca, foi abençoada e colocada a primeira pedra do Colégio Santa Juliana.[46] Esse terreno era mantido limpo pelas irmãs, com a ajuda de algumas mocinhas. O trabalho de construção durou anos, até que, em 5-6-1929, o colégio foi inaugurado com grande solenidade, na presença do Núncio Apostólico, Benedito Aloisi Masella (1927-1946), e outras autoridades civis e eclesiásticas.[47]
Em 8-3-1923, duas irmãs – irmã Mercedes e irmã Constantina – deixaram Sena Madureira e foram para Rio Branco, onde o governador José da Cunha Vasconcelos lhes entregou a direção do hospital local. Essa instituição chamava-se “Hospital Augusto Monteiro”, uma homenagem àquele que havia governado o Acre de 1915 a 1918, período em que ordenara sua construção. Embora fosse o único centro de saúde da cidade, havia sido fechado por falta de recursos humanos e materiais. Foi reaberto somente em 13 de maio de 1923 com a chegada das irmãs Reparadoras.[48]
No Brasil, a Congregação recebeu pouco tempo depois mais um reforço: em resposta ao pedido feito em 29-11-1924 por Dom Próspero e frei José Albarelli, outras quatro irmãs partiram para o Acre do porto de Gênova a bordo do navio Ansaldo S. Giorgio III, da Transatlântica Italiana. Na verdade, deveriam ter vindo em janeiro de 1924, mas a Madre Geral não permitiu que viajassem sozinhas. Por isso, frei Gregório Dal Monte as acompanhou até Belém. Ali, ele tomou o caminho do Rio de Janeiro e outro frade, vindo de Sena Madureira, levou as irmãs até a sede da Prelazia do Acre e Purus. O secretariado geral das Missões da Ordem pagou as despesas: $ 2.610,00 por pessoa, num total de $13.050,00.[49]
Em 1925, quando já havia dez irmãs no Acre, seis delas ficaram em Sena Madureira e as outras quatro partiram para uma nova fundação, embora por algum tempo continuassem juridicamente sendo uma só comunidade. Mais tarde, as irmãs abriram o noviciado em Rio Branco, numa modesta casa próxima à igreja.[50]
Com o novo status adquirido pela abertura da casa na capital territorial, em 14-12-1926, Madre Elisa nomeou a irmã Mercedes Andreello vigária geral, embora suas atribuições não fossem ainda bem definidas. Em 1927, chegaram da Itália mais quatro irmãs, e isso permitiu à Congregação dar um novo passo: aceitar o convite de ir para Xapuri e assumir a direção do Instituto Divina Providência. Nesse estabelecimento de ensino funcionava o curso primário até o curso ginasial, ao qual, em 1968, se acrescentou o curso de formação de professores.[51] Em 1938, o Instituto tornou-se Colégio e, apesar de suas dimensões limitadas, nos anos seguintes chegou a ter cerca de 200 alunos e introduziu os cursos de datilografia, música e bordado.
O aumento do número de comunidades impôs à Congregação uma reorganização dos serviços. Por isso, em 15-1-1931, a Priora Geral emanou uma série de normas, subdivididas em doze pontos precisos, entre os quais estabelecia Rio Branco como sede da Vigária Geral, com o poder de fechar uma casa no Acre e de abrir outra no Rio de Janeiro, a fim de garantir um lugar adequado para repouso ou tratamento de saúde das irmãs que viessem a precisar.[52] E assim se fez. Apesar de alguns incidentes de percurso que serão examinados a seguir, a obra das Servas de Maria Reparadoras era intensa, graças também às boas relações com o Governo, que havia dado todo o apoio ao trabalho que a Igreja realizava.[53]
Nos anos seguintes, outros frades chegaram ao Acre: em 1923, frei José Albarelli (1873-1942); em 1924, frei Aleixo Rattalino; e, em 1925, frei Gregório Dal Monte (1891-1963), junto com frei Júlio Mattioli (1902-1962), sobrinho de frei Tiago e futuro prelado.[54] Com a ajuda deles, Dom Próspero Bernardi colheu os primeiros frutos do seu labor episcopal. Em 1925 já havia cinco igrejas abençoadas e inauguradas e um número indeterminado de capelas. Não por acaso, frei José, visitador apostólico, em 11 de maio desse mesmo ano, emitia um comentário entusiasta sobre a obra do prelado:
Todas as pessoas com quem falei, inclusive Dom João Irineu Joffily, ex-bispo de Manaus e hoje promovido a arcebispo de Belém do Pará, elogiaram a conduta, os modos e o zelo [de Dom Próspero Bernardi]. A impressão que eu também tive, nos vários encontros mantidos em São Luís do Maranhão, foi boa sob todos os aspectos.[55]
Também o trabalho dos frades era apreciado: Dom Pedro Massa, SDB, Prefeito Apostólico de Rio Negro, em carta ao cardeal Caetano De Lai, datada de em 22-5-1925, afirmava convictamente que os Servos de Maria que trabalhavam na Prelazia do Acre e Purus, portavam-se “com grande zelo e atividade”.[56]
Dois espectros, porém, ameaçavam o desenvolvimento da Prelazia: as doenças tropicais e a maçonaria.
3.3 – Primeiros conflitos e sua repercussão
Um parêntesis deve ser aberto na história da Igreja no Brasil, devido à outra instituição: a Maçonaria. Tendo-se infiltrado no país desde o século XVIII quando, durante o segundo império, o episcopado procurou eliminar das confrarias leigas a presença dos membros das “grandes lojas”, o caso se transformou na célebre “Questão religiosa”, cujos momentos culminantes ocorreram entre 1872 e 1875.
Isso aconteceu por dois motivos interligados: a iniciativa dos prelados foi tomada com base em documentos pontifícios que não haviam recebido o placet, que era uma das colunas do regalismo institucional, e a maçonaria, muito influente nas elites do país – o próprio Presidente do Conselho de Ministros do Império, o Visconde do Rio Branco, era o grão-mestre do Grande Oriente do Lavrado – serviu-se dos mecanismos regalistas unilateralmente impostos pelo Trono sem o consenso de Roma, para contrastar a ação dos bispos. Por isso os maçons das irmandades penalizadas apresentaram um “recurso á Coroa”, que foi acatado e serviu de base para uma ação penal. Dom Pedro II não era maçom, mas apoiou a causa maçônica, porque não aceitava uma Igreja não submissa ao querer do Estado. Resultado: como os dois prelados mais envolvidos – Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, OFM Cap., bispo de Olinda, e Dom Antônio Macedo Costa, bispo do Pará – não recuaram de suas posições, acabaram presos e condenados em 1874 a quatro anos de prisão com trabalhos forçados, comutados depois pelo Imperador em prisão simples. Foi um escândalo clamoroso que Pandiá Calógeras viria a definir como “o mais grave erro político do segundo Império”. Nenhuma questão – acrescentou ele – “perturbou tanto quanto esta a consciência nacional. Nenhuma tão remotas conseqüências exerceu para o enfraquecimento da fidelidade à monarquia”.[57]
Dom Pedro II foi obrigado a recuar e anistiou os bispos em 17-9-1875, mas as relações entre o Trono e o Altar no Brasil ficaram irremediavelmente comprometidas. Por isso, quando, depois da Proclamação da República, em 15-11-1889, o Estado se tornou laico, o episcopado brasileiro – caso raríssimo em todo o mundo – aceitou a mudança com incrível serenidade. O motivo disso se entende, se tivermos em conta as palavras de Dom Luís Antonio dos Santos (1817-1891), arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, proferidas em 21-1-1890:
O padroado era uma carga pesada que estava atada à nossa religião, que a fez definhar entre nós, não somente à míngua da proteção do Estado, mas como à força da perseguição, e perseguição terrível, que acobertava-se com o manto da proteção e que, tendo em suas mão todos os meios de domínio, deles se servia somente para entorpecer a marcha da religião.
Sem apontar as tristes cenas do parlamento brasileiro nos primeiros dias do Império e a supressão das Ordens Religiosas; sem tocar nas lúgubres ocorrências da chamada questão religiosa, na diminuição das cátedras do seminário; sem lembrar a repugnância que se notava à divisão das dioceses, ao aumento dos vencimentos dos eclesiásticos, crescendo ao contrário os impostos sobre os escassos ordenados dos sacerdotes; a negação a tudo o que se propunha a bem do serviço da Igreja; se me fosse dado historiar só o concurso das paróquias vagas a que procedi ultimamente, faria velar o rosto. [58]
A liberdade conquistada permitiu que a Igreja impusesse uma disciplina rígida ao clero e às associações católicas leigas. Mas, apesar disso, o Estado laico republicano nunca foi dominado por sentimentos anticlericais. Pelo contrário, nos anos seguintes, verificou-se uma aproximação progressiva entre a Igreja e as associações públicas. O Acre foi parte integrante dessa lógica, como o demonstra, entre tantos outros episódios, a iniciativa tomada, em 4-2-1921, pelo administrador do território, Epaminondas Jácome, que emanou um decreto homenageando Dom Próspero Gustavo Bernardi:
Considerando que, embora em força da Constituição a Igreja esteja separada o Estado, o povo brasileiro é em sua maioria católico;
considerando que o fato de exercer o sacerdócio não lhe impede de merecer a estima e a admiração pública;
considerando que Dom Próspero Bernardi foi o primeiro prelado a aportar nestas longínquas plagas acreanas;
considerando que, na sua humildade cristã, o ilustre representante do catolicismo conseguiu reacender no espírito do povo acreano a sagrada chama do amor de Deus, fonte perene de bondade e de resignação;
considerando que por todos esses títulos Sua Excelência Reverendíssima impôs-se à admiração geral e conquistou simpatia unânime:
decreta-se dar à escola noturna que, como foi deliberado, será erigida na cidade de Xapuri, o nome de “ESCOLA DOM PRÓSPERO”.[59]
As revistas OSM da época são ricas de citações de eventos dos quais participaram juntos autoridades civis e religiosas, mas essa convivência “harmoniosa” teve seus momentos de crise. O motivo foi a atitude das lojas maçônicas, cuja audácia foi descrita em 20-11-1920 por frei Tiago Mattioli numa carta ao seu Prior Provincial: “Veja que a maçonaria é tão ousada que já até me convidou para entrar nas suas fileiras!”[60]
Era previsível que haveria tentativas para frear tal situação e isso aconteceu logo depois da chegada de frei José Albarelli (1873-1942) a Rio Branco em 1923. Erudito, mas polemista nato, o recém-chegado fora um dos responsáveis pela fundação do periódico Il Servo di Maria, considerado o boletim informativo mais antigo da Ordem na Itália. As articulações para a vinda de frei José Albarelli começaram a concretizar-se quando o governador do Acre, José Tomás da Cunha Vasconcelos, criou em Rio Branco um “Patronato Agrícola”, com cem alunos, e pediu a Dom Próspero Bernardi que indicasse um religioso, principalmente para o ensino de línguas. Disso se falou ao frei José Albarelli que aceitou com prazer e, em 29-8-1923, partiu de Gênova rumo ao Brasil a bordo do navio Alsina, trazendo consigo, em caixas, uma infinidade de objetos para as igrejas, para os missionários e os pobres da missão. Em 23 de setembro, chegou ao Rio de Janeiro, onde hospedou-se no mosteiro dos Beneditinos, com os quais passou um tempo aprendendo português, antes de ir para o Acre. Chegou a Rio Branco em 25-12-1923. Em 23 de janeiro do ano seguinte foi nomeado vigário forâneo por Dom Próspero Bernardi e começou a lecionar inglês e francês na Escola Sete de Setembro. Ali trabalhou quatro anos, e esse foi o período mais atormentado de toda a sua vida. [61]
Logo depois de sua chegada, frei José Albarelli se indispôs com a desenvoltura dos maçons no ambiente eclesial de Rio Branco, e procurou mudar a situação. O problema era que lhe faltava a necessária cautela nas palavras e nos gestos, e isso comprometia os seus planos. Emblemático foi o que aconteceu em 27-1-1927. Na ocasião, num discurso fúnebre, o impetuoso frade indispôs o Coronel Laudelino Benigno, que saiu da igreja, acompanhado dos seus oficiais. Os rancores contra o ocorrido atingiram também Raimundo Machado (“Machadinho”), amigo dos Servos de Maria, que havia abjurado da “grande loja”, o qual, no dia seguinte ao incidente na matriz, foi afastado do cargo que ocupava como secretário do governo.[62] Além disso, foi obrigado a sair de Rio Branco e mudar-se para o Rio de Janeiro. Para ajudá-lo, frei José Albarelli comprou-lhe a casa e a mobília e lhe doou mais 4 contos de réis. Em 11-5-1927, “Machadinho” chegou ao Rio e ficou hospedado na casa dos Servos de Maria, na Rua São Luís Gonzaga, até encontrar um lugar adequado para morar.[63]
Enquanto isso, o ambiente em Rio Branco ficava sempre mais tenso, porque frei José Albarelli nem sempre sabia harmonizar seus sentimentos patrióticos com os sentimentos do povo com o qual trabalhava. Em 24-11-1927, a diretora do Hospital Municipal Augusto Monteiro, irmã Mercedes Andreello, por falta de leitos disponíveis, recusou a internação de um doente, e quando lhe disseram que se tratava de um pedido do próprio governador, Hugo Ribeiro Carneiro, ela deu uma resposta que talvez não tivesse grandes conseqüências alhures, mas no Acre era altamente ofensiva. Disse ela: “Já disse que não há leitos; a não ser que o Governador me mande o seu, não posso receber o doente”. O Governador mandou um militar com ordens para pedir à irmã que fosse até ele para dar explicações. A irmã, sem dar-se conta da gravidade da situação, não foi e, em contrapartida, recebeu das mãos de um oficial da Força Pública uma intimação para comparecer. Ela o fez, mas protestando. O Governador, naturalmente, ficou muito ofendido com a reação da irmã. Apesar disso, a questão podia ser reparada com um diálogo cortês. Mas, a esta altura, frei José Albarelli entrou em cena, aconselhando a irmã a resistir e a telegrafar à Embaixada Italiana. Ele mesmo escreveu o texto, enviando-o antes que a imã Mercedes o fizesse. Daí se seguiu uma intensa troca de telegramas, e o bispo, para solucionar o caso, pediu ao frade que removesse a irmã. Frei José Albarelli não soube administrar a situação e o resultado foi desastroso: em vez da substituição de uma, o governo do Território do Acre decidiu mandar embora todas as freiras da instituição. A expulsão delas se deu com tanta aspereza que acabou se tornando um verdadeiro desastre.[64]
Todavia, o fato mais célebre ocorreu em 28-11-1927. Depois de uma discussão, frei José Albarelli cingiu a cintura com uma faixa tricolor italiana (branca-vermelha-verde), saiu de casa e percorreu o caminho entre a igreja São Sebastião a o vizinho Palácio do Governo. Essa atitude insólita despertou em alguns a curiosidade, em outros o estupor e em outros ainda o desdém. O povo reuniu-se ao seu redor e não faltou quem visse em tal gesto uma verdadeira provocação. Por isso, o delegado de polícia, Dr. José de Melo, o intimou a apresentar-se na delegacia para dar explicações. Frei José respondeu que “a distância entre sua casa e a do delegado era a mesma que entre a casa do delegado e a sua; por isso, se ele tinha algo a dizer-lhe, que procurasse o pároco”. O delegado levou a coisa a sério e quando se aproximou, encontrou frei José na rua discutindo com o povo. Para evitar maiores embaraços, deu o braço ao frade, conduziu-o ao seu escritório e, depois de três ou quatro horas, levou-o à casa paroquial. Mas o caso não acabou aí. Para maravilha do bispo, o frade, do púlpito, declarou que estavam excomungados todos os que haviam tomado parte nos fatos citados. Ao mesmo tempo, telegrafou à Embaixada Italiana no Rio de Janeiro e, presume-se, ao próprio Benito Mussolini. Enquanto isso, os jornais sensacionalistas locais punham mais lenha na fogueira. O bispo, que havia chegado a Rio Branco em 15-12-1927 para a visita pastoral, num primeiro momento achou que podia resolver a situação transferindo o irrequieto frade para Sena Madureira. Mais tarde, porém, mudou de idéia e, após consultar os confrades Servos de Maria (desconhecemos o conteúdo dessa consulta), decidiu demiti-lo de suas funções e mandá-lo de volta à Itália.
Em 16-1-1928 o prelado explicou sua decisão ao Prior Geral, fazendo uma crítica severa contra o confrade que partia:
Padre Albarelli volta hoje para Roma. […] O único e verdadeiro (o grifo é do autor) motivo que me levou a tomar essa decisão foi exclusivamente seu temperamento que deu azo a uma série de atitudes intempestivas e impulsivas, cada uma das quais, tomada isoladamente, poderia parecer inépcia, mas no seu conjunto criaram uma situação que eu considerei improfícua para o bem espiritual do povo e, para uma parte dele, prejudicial.
Padre Albarelli faz o jogo de fazer crer que é perseguido pela maçonaria e é vítima dela. No meu entender, ele é vítima de sua megalomania, em força da qual precisa envolver muita gente, principalmente da classe dominante, para que se fale dele e se tenha a ilusão de que, sem ele, o mundo não vai para frente ou não caminha bem.[65]
E assim, em 18-1-1928, frei José Albarelli voltou para a Itália a bordo do navio Rio Aripunã, sendo substituído em 1º de fevereiro do mesmo ano por frei Gregório Dal Monte.
O triste episódio recebeu várias interpretações: por um lado, reconhece-se que frei Albarelli se excedeu, mas, por outro lado, não se pode negar que a maçonaria local era deveras atrevida. Vale lembrar que, apesar de alguma voz contrária, seus confrades Servos de Maria o apoiaram. Três deles, entre os quais o próprio frei Gregório Dal Monte, mais frei Júlio Mattioli e frei Egídio Muscini, chegaram a escrever-lhe uma carta em 14-1-1928, manifestando-lhe solidariedade:
Antes que o senhor se separe de nós, queremos manifestar-lhe, além de oralmente, também por escrito, os nossos sentimentos a seu respeito nas tristes circunstâncias atuais, dando-lhe plena liberdade de fazer desta nossa carta o uso que lhe aprouver.
Será para o senhor motivo de conforto recordar a paz e harmonia que sempre reinou entre nós, e a nossa total convicção de que seu afastamento de Rio Branco deve-se às intrigas da maçonaria e à vingança mesquinha do atual governador. […] Quem lhe fez oposição não foi o povo simples do interior, onde o senhor era benquisto por todos por suas aulas de catecismo e por suas freqüentes visitas aos doentes; não foram os comerciantes que se recusaram maciçamente a assinar o pedido feito ultimamente pelo chefe de polícia para obter do bispo a sua remoção. […] Enfim, não foi o povo católico em geral, que continuou a freqüentar a igreja e a buscar os sacramentos do batismo e do matrimônio como antes e mais do que antes, como o comprovam os registros paroquiais. Foram os maçons que lhe fizeram oposição, que não podiam perdoar-lhe a coragem de não admiti-los como padrinhos de batismo, apesar do seu status social, e de combater a maçonaria através do Boletim Paroquial, de panfletos e de suas pregações na igreja. Contrários ao senhor foram os ladrões, os dissolutos, os violentos que se viam atingidos por suas pregações contra a ladroeira e outros vícios […].
Além disso, embora não nos caiba julgar nossos superiores, cremos, porém, que nos seja lícito expressar a dor e o estupor que tomaram conta de nós ao ver que o bispo, que se mostrara cheio de ternura com um sacerdote que abandonou o sacerdócio como o padre Villa, e um sacerdote de vida escandalosa como o padre Benedito de Araújo Lima [ex-pároco de Xapuri], não só não defendeu o senhor, mas chegou até a proibir-lhe de defender-se, com a palavra e por escrito, das infames acusações veiculadas na carta aberta publicada na Folha do Acre, defesa que teria sido fácil diante das evidentes mentiras nela contidas.
[…] Sirva-lhe de conforto recordar que outros sofreram iguais e maiores perseguições desta mesma seita obscurantista, tantas vezes condenada pelo Sumos Pontífices, e que o senhor, além do mérito de ter lutado contra os inimigos da Igreja, terá também o mérito de ter sido obrigado a ceder diante deles para obedecer ao bispo. […] Renovamos-lhe, pois, nossos agradecimentos e reiteramos nossos sentimentos de estima e apreço, pedindo a Deus que o recompense pelo mal que os homens lhe fizeram.[66]
Acrescente-se que depois do seu retorno à Itália, frei José Albarelli recobrou a serenidade. Primeiro trabalhou no convento de Pesaro, ensinando religião nas escolas públicas. Depois mudou-se para o convento de Bolonha, onde se dedicou a estudos variados (filosofia, teologia, radioestesia [sensibilidade às radiações], origem da linguagem e, principalmente, história da Ordem), publicando uma extensa série de escritos. Acometido por crise cardíaca, morreu serenamente em Roma na noite de 15 para 16-12-1942, vítima de edema pulmonar, depois de receber os últimos sacramentos.[67]
O “caso” Albarelli teve uma importante conseqüência jurídica para a Ordem no Brasil. Isso aconteceu porque, ao retornar à Itália, frei José Albarelli pleiteou que fosse nomeado um vigário geral da Ordem para a fundação brasileira, como previa o Direito Canônico, para evitar a repetição de incidentes e divergências entre o bispo e os frades. Seu pleito foi atendido pelo Prior Geral, frei Agostinho Moore. Como veremos mais adiante, o primeiro vigário geral OSM nomeado foi frei Tiago Mattioli, ao qual o Prior Geral escreveu em 26-4-1929, comunicando-lhe a decisão tomada.[68]
No Brasil, porém, alguns problemas ficaram sem solução. Em 1936, a segunda Madre Geral das Servas de Maria Reparadoras, irmã Teresa Rossi (1886-1962), não conseguindo pôr-se de acordo com Dom Próspero Bernardi sobre as atividades de suas coirmãs, chamou de volta à Itália as irmãs que estavam em Sena Madureira. Por isso, o Colégio Santa Juliana foi fechado em 27-10-1936, e as meninas órfãs, entregues a suas famílias. As últimas religiosas Reparadoras a deixar a cidade foram a irmã Teodolinda Buffon (1903-1972) e a irmã Escolástica Fruscalzo (1910-1999). Permaneceu apenas a aspirante Juliana Ferreira de Souza, natural de Sena, que tomou conta da casa até a volta das irmãs cinco anos depois, em 23-6-1941, que possibilitou a reabertura do colégio em 1º de junho do mesmo ano.[69]
Mas as irmãs não eram as mesmas. Eram duas novas: irmã Ester Bressan (1902-1979) e irmã Adelaide Giardi (1912-1997). Também o perfil do Colégio Santa Juliana mudou, uma vez que, na prática, foi transformado em escola particular (internato e externato), não mais privilegiando a assistência às órfãs. O que não mudou foi a dureza do trabalho a ser feito.
Ao comentar os primeiros vinte anos de presença da Família OSM no Acre, Dom Próspero Bernardi preferiu ressaltar o espírito de colaboração existente: “Desde os primeiros anos, compartilhamos, quase sem percebê-las, as escassas alegrias e todas as amarguras próprias de uma nova fundação, tão grande era a concórdia no trabalho conjunto repleto de dificuldades diante das incógnitas contra as quais era preciso lutar”.[70]
3.4 – Abertura das comunidades de Xapuri e Brasiléia e criação de novos lugares para o culto e a caridade
Ainda na década de vinte, a Ordem expandiu sua presença em outras localidades da prelazia, embora, em muitos casos, os frades fossem obrigados a viver sozinhos e em condições de extrema necessidade. Digno de menção foi o caso de frei Filipe Gallerani, chegado ao Brasil em 16-12-1921, que foi logo designado para Xapuri, cuja paróquia fora criada em 20 de janeiro desse mesmo ano. Ali permaneceria como pároco de 1921 a 1937 e de 1942 a 1954. Mais do que outros, teve que enfrentar as mais variadas situações, provocando um comentário admirado de Dom Próspero Bernardi:
Não tinha mais visto este frade desde 16 de março de 1920, quando saí de Bolonha. Pude revê-lo pela primeira vez em 15-12-1922. Encontrei-o envelhecido e muito magro. Fiquei com ele algumas semanas e constatei que só podia mesmo emagrecer, uma vez que sua parcimônia me fazia recordar a de Caio Fabrício, do qual se diz que “cenabat ad focum radices et herbas quas in agro repurgando vulserat” (= comia ao fogo raízes e ervas que colhia da terra).
Além disso, eu o via ocupado o dia inteiro, realizando desde os mais humildes afazeres domésticos até as mais solenes funções do seu sagrado ministério. De fato, quanto à igreja, põe-se ele próprio a varrê-la, a orná-la de flores, decorá-la, e a reunir o povo ao toque do sino. Depois, tira das almas o pó da ignorância com uma catequese paciente; limpa-as das manchas do pecado com o sacramento da penitência; e esclarece as mentes dos fiéis com oportunas instruções. A alguns ele atrai com a melodia do canto e da música sacra; a outros entretém com oportunas ilustrações e com pequenos presentes, para depois santificar a todos na participação dos santos sacramentos.
Tudo isso ele faz não só na quietude da cidade, mas também lançando-se para o interior da mata, atravessando rios e florestas, superando perigos que eu mesmo conheço e posso facilmente avaliar. Quanto à casa, todos sabem que é preciso atender as pessoas à porta, preparar um pouco de comida, cuidar da dispensa, do guarda-roupa, da horta e do galinheiro, além de preocupar-se em registrar tudo nos livros de administração. Frei Filipe cumpre tudo isso com louvável satisfação, além de ser enfermeiro em casa e fora de casa, desenhista e apaixonado arquiteto. […] Não nos admira, pois, que tenha conseguido cativar a simpatia de um discreto número de admiradores, apesar da indiferença de muitos, da oposição aberta de alguns e da sistemática maledicência de quem tem outros interesses. [71]
Na verdade, a oposição a que se refere o bispo, manifestou-se no momento da chegada de frei Filipe a Xapuri. Em vez de receber as boas-vindas, foi alvo de indiferença e hostilidade. O motivo era a presença na cidade, desde 1908, do Pe. Benedito Araújo Lima, sacerdote secular proveniente da arquidiocese de Fortaleza-CE, que já fora suspenso pelo bispo de Manaus e era professor e diretor da Escola Dom Próspero. Esse padre, além de instigar o povo contra frei Filipe, deixou-lhe como herança uma igreja, ou melhor, uma barraca que funcionava como igreja, suja, cheia de poeira, coberta de teias de aranha, mal-acabada e inabitável.[72] Para complicar ainda mais a situação, referido sacerdote secularizado era “concubinário público e escandaloso, suspeito de heresia, obstinadamente rebelde à autoridade eclesiástica, simpatizante da maçonaria e vingativo”. Só depois de muita luta o bispo, com a ajuda do governo, conseguiu reduzi-lo ao estado laical. “Fecharam-se assim as cortinas de uma comédia escandalosa de muitos anos atrás”, pôde, por fim, dizer o frade em 1927.[73]
No entanto, nem frei Filipe, nem outros que o sucederam conseguiram fazer mudar de vida o ex-padre Benedito, que acabou morrendo em 29-9-1944, ainda impenitente e fora da comunhão com a Igreja.[74]
De qualquer forma, frei Filipe não perdeu tempo, e conseguiu reverter a situação inicial de desvantagem em que se encontrou. Trabalhador incansável, construiu a nova igreja paroquial, iniciada em 4-12-1934 na presença das autoridades locais, entre as quais o prefeito, Dr. Coelho Filho, e fundou o Colégio Divina Providência, logo entregue às irmãs Servas de Maria Reparadoras, destinado a educação das crianças. Foi seu grande mérito, porém, ter feito reflorescer a fé e os bons costumes dos fiéis. Frei Filipe era chamado “o anacoreta di Xapuri” pelos muitos anos que foi obrigado a viver totalmente sozinho, perdido nesse lugar tão distante.
Em 4-9-1934, assim escreveu ao Prior Geral, pedindo ajuda:
Rev.mo Padre Geral.
Tenha piedade de mim, abandonado há bem 13 anos à sorte desoladora de viver sozinho, sendo-me negado inclusive o direito e o conforto da confissão! Os frades de Sena, de Rio Branco e de Brasília (atual Brasiléia) podem confessar-se até diariamente, mas a mim este direito me é negado. Se quero confessar-me, devo abandonar a casa paroquial por oito dias ou mais e gastar cerca de cem liras, salvos sempre muitos erros e omissões.[75]
Apesar desse apelo dramático, frei Filipe teve que continuar ainda por algum tempo sozinho em Xapuri. Dom Próspero escreveu a seu respeito:
Encontrei (frei Filipe) ocupado, cultivando e limpando as verduras e legumes de sua horta, único alimento de cada dia. Em Xapuri, frei Filipe transcorreu vinte e dois anos, saindo uma só vez para uma rápida visita à Itália, retornando logo em seguida para a sua nova pátria que ele temia deixar abandonada à mercê do lobo voraz. Em Xapuri, celebrou seus 25 anos de ordenação sacerdotal sozinho, com um prato de feijão e arroz. Nesse dia, suas lágrimas caíram copiosas na panela! Foi assim que ele conseguiu construir a florescente comunidade cristã de Xapuri, que hoje é a consolação e a alegria do velho missionário, o querido e heróico anacoreta de Xapuri.[76]
Só mais tarde, por breve período, chegou para fazer-lhe companhia o irmão frei Luís Berti. De 1937 a 1942, frei Filipe passou duas breves temporadas nos conventos de Turvo e São Paulo, sendo substituído em Xapuri, de 1937 a 1940, por frei Carlos Cumerlato, e de 1940 a 1942, por frei Fernando Marchioni (1899-1954), ex-pároco da Paróquia de São Pedro, de Ancona, Itália. Depois disso, a pedido de Dom Júlio Mattioli, reassumiu seu antigo posto, mas desta vez não mais sozinho e sim em companhia do irmão frei Rafael Schraufstetter. Frei Fernando Marchioni mudou-se para Rio Branco. Depois, frei Filipe transcorreu três anos na Itália. Voltando para o Brasil, pediu para reassumir a paróquia onde vivera tantos anos, mas seu superior religioso, frei Gregório Dal Monte, houve por bem enviá-lo a Rio Branco, onde poderia cuidar melhor de sua saúde já debilitada. Enfraquecendo-se sempre mais, foi transferido para São José dos Campos, onde morreu na Santa Casa local aos 29-7-1965, na veneranda idade de 87 anos. Seu sucessor em Xapuri foi frei Carlos Zucchini.[77]
Grandes exemplos de abnegação encontram-se também em outros lugares. Um desses casos foi Brasiléia (originariamente chamada Brasília), a quarta paróquia do Acre (depois de Sena Madureira, Rio Branco e Xapuri), desmembrada de Xapuri e erigida em 2-2-1921. A pequena cidade tem uma história curiosa. Quando o bispo de Manaus, Dom Frederico Benício de Souza e Costa, visitou o Acre e Purus entre 1910 e 1911, todos os brasileiros dessa região, que não viviam na zona rural, moravam em Cobija, cidade boliviana de fronteira, separada do território brasileiro pelo rio Acre. A presença do prelado estimulou os compatrícios a construir uma cidade própria na outra margem do rio. E assim, no início de julho de 1911, numa cerimônia campestre, Adélia Pinheiro Machado – a única senhora regularmente casada do lugar – plantou uma arvorezinha no lugar onde todos queriam que surgisse o futuro centro urbano. O lugar escolhido foi o seringal de Dona Braga Sobrinho, onde logo começou a construção da nova cidade.[78]
A mesma senhora Adélia Machado, junto com Bibina Giannario, em 1918, erigiu uma igrejinha com paredes de barro e coberta de palha, dedicando-a à Imaculada Conceição. Dois anos depois, outra senhora, Amélia Dias, com as esmolas recolhidas, construiu uma capela nova, mais ampla e toda de madeira, com fachada e uma torre de 12 metros de altura.[79]
Quando Dom Próspero Bernardi erigiu canonicamente a paróquia, mudou a padroeira da igreja, trocando a Imaculada Conceição por Nossa Senhora das Dores. Antes da chegada de frei Aleixo Rattalino, proveniente da Argentina, a paróquia era atendida por um frade franciscano, frei Lourenço Delgado, pároco da vizinha Cobija.
Frei Aleixo tomou posse em 27-2-1924, e mostrou ser um frade de grande zelo. Desde sua posse até a morte, ocorrida em 1940, organizou várias obras, entre as quais a escola para meninos, em 1927, e a escola para meninas, em 1930. Entre 1934 e 1935 fundou a Associação das Filhas de Maria para as jovens, a Associação São Luís Gonzaga para os rapazes, a Associação Nossa Senhora das Dores para as mulheres e a Associação de São José para os homens. Todas essas iniciativas foram realizadas enfrentando situações hostis, num lugar em que as únicas vias de locomoção e comunicação eram os rios do Alto Amazonas e os perigosos varadouros da floresta. O trabalho de cada dia de frei Aleixo era visitar os doentes e idosos, formar os catequistas e animadores pastorais e administrar fielmente os sacramentos. Havia o perigo da malária que acabaria por levá-lo à morte. Anos mais tarde, seus restos mortais foram solenemente transladados do cemitério local para a igreja matriz.[80]
Na década de trinta aconteceu a primeira deserção de um frade no Brasil: o norte-americano, frei Aleixo (Alexis) Phalen, professo de votos temporários. Veio para o Brasil em 1933, voltou para os Estados Unidos em novembro do ano seguinte e, depois de breves passagens pelos conventos de Detroit e Denver, abandonou a vida religiosa em 1935.[81] Infelizmente, seu caso não foi o único: em 19 de março do mesmo ano, também frei Luís (Luigi) Berti pediu a dispensa dos votos, que lhe foi concedida em 13-1-1939.
Delineava-se assim um problema que se tornaria mais sério em pouco tempo: os Servos de Maria, chamados a exercer seu ministério na Prelazia do Acre e Purus eram ótimos missionários, mas para responder aos variados compromissos pastorais, tinham dificuldade de conciliar os trabalhos assumidos com o carisma da Ordem, em particular com os ritmos normais da vida comum. Nesse particular contexto, merece ser visto com compreensão o caso dos irmãos leigos que foram ao Acre e Purus – os dois acima citados que deixaram a Ordem e frei Domingos Baggio que voltou para a Itália. Apesar disso, numa carta dirigida ao Prior Geral, frei Gregório Dal Monte limita-se a dizer:
Muito triste a saída de frei Luís Berti, cujo pedido de dispensa dos votos solenes já enviei por via aérea. Sempre achei que o Acre não é lugar para os irmãos leigos, devido ao isolamento em que são obrigados a viver. Frei Domingos Baggio teve que voltar para a Itália. Frei Aleixo Phalen voltou para os Estados Unidos e acabou saindo da Ordem. Esperamos que este terceiro caso seja também o último.[82]
De qualquer forma, o trabalho continuou e, em 1937, a Ordem mantinha no Acre cinco frades presbíteros (frei Aleixo Rattalino, frei Filipe Gallerani, frei Júlio Mattioli, frei Carlos Cumerlato e frei Egídio Rovolon) e dois irmãos leigos (frei Rafael Schraufstetter e, por breve tempo, frei Luís Berti).[83]
Quando os Servos de Maria se estabeleciam num lugar, geralmente deviam começar tudo do nada, quer no campo estritamente religioso (organização da catequese, visitas às comunidades distantes na floresta, trabalho paroquial, construção de templos e capelas), quer no setor educacional (colégios, escolas) e até mesmo no campo da saúde pública (hospitais, leprosário de Rio Branco).
O caso do leprosário chama a atenção porque, naquele tempo, a lepra era vista como uma doença “vergonhosa”, e os contagiados viam-se totalmente excluídos da convivência social. Em 1928, em Rio Branco, a 14 quilômetros do perímetro urbano, num terreno doado por um certo Amâncio Irineu, o governo mandou construir para eles um campo com dois grandes barracões: um para homens e o outro para mulheres. Ambos foram abandonados, porque os próprios internos, por um sentido de repugnância entre eles mesmos, preferiram construir pequenas casinhas cobertas de palha, onde podiam viver isolados ou no máximo em dois ou três. Semanalmente, um encarregado lhes trazia da cidade uma provisão de alimentos e roupa, e eles viviam ali, isolados, preparando sua própria comida e fazendo os serviços de limpeza. Ninguém tinha coragem de trabalhar com essas pessoas e, na entrada do campo, havia uma placa de advertência: “Entrada proibida”.
Coube aos frades e ao bispo a dolorosa incumbência de humanizar um pouco essa desesperada condição de segregados. Em 1935, o número de doentes chegou a 48, e eles, com suas próprias forças, depois de sete anos de trabalho duro, inauguraram uma pequena capela de madeira onde se reuniam para rezar. No ano seguinte, a capela foi dedicada a São Lázaro (e mais tarde, a São Filipe Benizi). A igreja não se limitava a dar assistência espiritual aos doentes, mas nem sempre conseguia satisfazer-lhes todas as necessidades, porque eram muito caros os primeiros remédios contra a hanseníase, principalmente a Antilebbrina Valenti produzida em Milão. Como se queixava Dom Próspero, o governo preferia manter um inútil contingente de funcionários públicos em Rio Banco a comprar os remédios para os necessitados.[84]
3.5 – Primeiras vocações nativas, troca do estado jurídico e ereção do convento de Boca do Acre
Já em 1925 os frades haviam conseguido contatar e evangelizar boa parte dos seringueiros, colonos e também muitos indígenas. Em 1928, tiveram a satisfação de receber as primeiras vocações nativas: os irmãos Maurício, que tomou o nome religioso de José (1912-1996) e Wanderilo, que passou a chamar-se Peregrino (1913- 1992).[85]
Partiram para a Itália em 1930 a bordo do navio Flórida, acompanhados por frei Filipe Gallerani, com a ordem de frei Tiago Mattioli de dirigir-se imediatamente para Roma. Seu noviciado, iniciado logo em seguida, foi divulgado pelas revistas da Ordem como Le Missioni dei Servi di Maria e L’Apostolo del Crocifisso e dell’Addolorata. A edição de 1-7-1930 dessa última revista fez um comentário entusiasta:
O dia 2 de maio, festa de São Peregrino Laziosi, padroeiro da nossa missão no Acre e Purus, foi alegrado em Nepi com uma cerimônia simpática e solene. Os dois primeiros rebentos acreanos, da nossa escola apostólica de Rio Branco, aberta três anos atrás, fizeram ingresso no jardim de Nepi. […] O Rev.mo Padre Geral quis que a entrega do hábito aos dois brasileiros fosse feita por frei José Albarelli que os admitira na Ordem. […] Aos futuros missionários do Acre, aos primeiros frutos de tantas lutas e dores, os melhores votos de uma boa preparação.[86]
Enquanto isso, a província-mãe encontrava-se esgotada. Por isso, em 25-10-1927, respondendo a um apelo de Dom Próspero, a fundação brasileira, para continuar recebendo a ajuda indispensável da Ordem, foi temporariamente desligada da Província da Romanha, passando a depender diretamente do Prior Geral.[87] Em 25 de julho do ano seguinte, para evitar a excessiva interferência do bispo nas questões internas da Ordem, frei Gregório Dal Monte e frei Júlio Mattioli, seguindo as pegadas de frei José Albarelli, escreveram ao Prior Geral propondo a nomeação de um Superior Regular para os Servos de Maria no Brasil. Na ocasião, frei Gregório fez algumas sugestões precisas e bem motivadas:
Eu penso que este superior deve:
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Residir fora da Prelazia, no Rio de Janeiro (é para isso muito indicado frei Tiago Mattioli, homem já prático, muito calmo e paciente).
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Não intrometer-se no governo interno da Prelazia para não criar um dualismo inútil e prejudicial.
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Ter poder para retirar os frades da Prelazia ou para lá enviá-los. Em suma, deve fazer as vezes de vigário do Rev.mo Prior Geral no Brasil para facilitar as coisas e poupar tempo.
Estas são as razões que justificam esse tipo de organização dos frades no Brasil:
– Dom Próspero comete erros evidentes contra o Direito Canônico e a teologia moral (por exemplo, dando a absolvição sacramental e a santa comunhão aos maçons, sem sequer exigir que abandonem a seita; negando o sacramento do matrimônio a todos os que não querem ou não podem contrair o matrimônio civil). Pode cometer e já cometeu erros de outro gênero na maneira de tratar os sacerdotes […].
– Com a presença de um superior regular no Rio de Janeiro, os frades doentes e cansados poderiam deslocar-se sem grande transtorno.[88]
O Prior Geral aceitou na íntegra essas sugestões e, em 26-4-1929, nomeou como seu vigário frei Tiago Mattioli, que exerceu esta função até 1936, quando foi substituído por frei Gregório Dal Monte. Outros frades chegaram na década de trinta, contribuindo para manter em dia os trabalhos iniciados.[89]
O novo estado jurídico permitiu que alguns frades de outras províncias viessem para a missão: em 1930 aportaram na Prelazia frei André Van Halder (1890-1971) e o irmão leigo frei Aleixo Phalen (dispensado dos votos em 5-8-1933), ambos filhos da Província dos Estados Unidos da América. No mesmo ano, proveniente da Província Tirolesa, chegou o irmão leigo frei Rafael (Mathias) Schraufstetter (1896-1951). A eles juntaram-se, em 1933, frei Egídio Rovolon (1909-1940), e em 1936, frei Carlos Cumerlato (que se fez sacerdote diocesano em 26-12-1953) e o irmão leigo frei Luís Berti (dispensado dos votos em 13-1-1939), todos provenientes da Província Lombardo-Vêneta. Ao mesmo tempo, em 1933, dois frades da Província da Romanha quiseram vir trabalhar no Brasil: frei Ugo Poli (1907-1982) e frei Peregrino Bellezze (1884-1961).[90]
Com o passar dos anos, a situação da Província da Romanha melhorou graças ao aumento do número de vocações. Por isso, o Capítulo Geral celebrado em 1938 fez votos que a fundação brasileira retornasse sob a dependência da província-mãe. O Prior Provincial da Romanha, frei João Rossi (1902 – 1945), declarou-se favorável, e o Prior Geral, frei Afonso Benetti, pediu a autorização do papa Pio XII para efetuar a mudança:
Beatíssimo Padre.
O Prior Geral da Ordem da bem-aventurada Virgem Maria, prostrado aos pés de Vossa Santidade, implora humildemente a faculdade de conceder que as fundações no Brasil, junto com a Prelazia de São Peregrino Laziosi na região setentrional do Acre e Purus, que estão sob a jurisdição direta do Prior Geral, passem a depender da Província da Romanha.[91]
A autorização foi concedida sob o protocolo n.º 7.239/38, de 1-10-1938, estabelecendo o que segue:
Em força da faculdade concedida pelo Santíssimo Nosso Senhor, a Sagrada Congregação encarregada dos Negócios Religiosos, vista a exposição de motivos, concedeu ao Reverendíssimo Orador (Prior Geral) a faculdade solicitada para levar a cabo aquilo que foi proposto, segundo seu arbítrio e consciência, observando as normas de direito, não obstante as leis contrárias.
Roma, 1º de outubro de 1938.
Fr. L. H. Pasetto, secretário.
Enrico Agostini, ajudante de escritório.[92]
Infelizmente, no ano seguinte, começou a Segunda Guerra Mundial que impôs uma dura provação à Ordem na Itália. Enquanto isso, o território da prelazia passava de dois 71.200 Km2 iniciais para 72.600 Km2, provocando uma mudança bastante problemática. Dom Próspero Bernardi havia logo percebido que a prelazia que lhe fora confiada tinha uma configuração geográfica irregular. Por isso, em 1922, escrevera ao papa Pio XI pedindo providências:
Durante a visita pastoral feita em setembro passado, por exigência das vias de locomoção, tive que viajar e trabalhar 16 dias em território não pertencente à prelazia, mas dependente da diocese de Manaus, de cuja sede tal território dista 2.322 km na parte mais próxima e 2.491 km na parte mais afastada. São exatamente 169 km de território dependente de Manaus que inevitavelmente se deve percorrer para chegar ao poente da prelazia, e a beleza de outros 410 km também dependentes de Manaus que inevitavelmente se deve atravessar para chegar ao levante, isto é, um total de 579 km de território pertencente à Diocese de Manaus que separa um ponto do outro da Prelazia no único meio de locomoção até hoje existente, a via fluvial do Iaco, Purus e Acre
Para obviar o inconveniente dessa separação, até 1920 o pároco de Sena Madureira (dependente da prelazia) e o pároco de Antimary (dependente de Manaus), ao qual estão confiados os referidos 579 km de território, fizeram um acordo (aprovado pelo Ex.mo Dom Joffily, bispo de Manaus, e pelo abaixo-assinado) para trocar provisoriamente o atendimento de uma parte da respectiva paróquia para torná-lo na prática mais razoável.
A fim de passar de uma situação provisória para uma solução estável, o humilde solicitante implora que Sua Santidade se digne corrigir os limites do território da Prelazia.[93]
A argumentação foi encaminhada à Nunciatura Apostólica, que pediu o parecer do bispo de Manaus. Dom Joffily admitiu que o “bem das almas” exigia uma nova organização eclesiástica na região mencionada, mas afirmou que tal mudança, naquele momento, não era conveniente, e que bastava o acordo feito entre os dois párocos.[94]
Somente em 1933 a questão foi resolvida exatamente como defendia Dom Próspero. Foi agregado à prelazia todo o território da confluência dos rios Acre e Purus. Ali existia uma vila fundada ainda no século XIX, denominada mais tarde de Floriano Peixoto. Em 31-3-1938 foi rebatizada com o nome de Santa Maria da Boca do Acre, e por fim, em 1943, simplesmente Boca do Acre. Dom Próspero fez a primeira visita a essa região em outubro de 1935, durante uma desobriga ao longo da bacia do Purus, entre os confluentes dos rios Acre e Inauhiny.[95] Depois dele, a partir de 1939, os Servos de Maria começaram a dar assistência parcial ao povo do lugar. Isso levou à criação da quinta paróquia da Prelazia, dedicada a São Pedro Apóstolo. Sua sede estava exatamente em Boca do Acre, situada na confluência do rio Acre com o rio Purus, além dos confins acreanos e já dentro dos limites do vizinho Estado do Amazonas. Mas canonicamente essa paróquia só seria entregue aos Servos de Maria em 6-3-1951, por decisão de Dom Júlio Mattioli.[96]
Antes que isso acontecesse, a Província da Romanha tinha conseguido enviar outros dois frades, os últimos antes do final do grande conflito mundial: frei Agostinho Poli (1909-2001), irmão de frei Ugo Poli, e frei Tiago Coccolini (1914-1999). Eles partiram de Gênova em 6-2-1940, a bordo do transatlântico Oceania, com a bênção do Prior Provincial de então, frei João Rossi, e chegaram ao Rio de Janeiro dia 21 do mesmo mês. A partir de então todos os contatos entre a Itália e o Brasil ficaram praticamente interrompidos. Mas o trabalho realizado pelos frades continuou. A começar pelos dois recém-chegados que, depois de alguns meses no Rio de Janeiro, separam-se: frei Agostinho embarcou para o Acre em companhia de frei Egídio Rovolon; e frei Tiago foi para o sul do Brasil. De 1940 a 1943, frei Agostinho foi coadjutor em Sena Madureira, Rio Branco e Xapuri. Foi depois transferido para Boca do Acre, onde permaneceu até 1956.[97]
3.6 – Persistentes desafios do trabalho missionário
Geralmente, costuma-se dizer que de 1920 a 1940, os frades do Acre privilegiaram como método de trabalho as desobrigas, isto é, as viagens missionárias, visitando as comunidade existentes nas florestas e ao longo dos rios, fazendo catequese, celebrando os sacramentos, transmitindo algumas noções mínimas de higiene, fornecendo aos doentes formas rudimentares de cura e, quando possível, pacificando as famílias. No caso da comunidade de Sena Madureira, esse trabalho às vezes levava o frade a ficar fora do convento até quatro meses, mergulhado numa atividade extenuante. Nessas circunstâncias, o frade em questão devia adaptar-se penosamente a formas incômodas de repouso e alimentação, em situação tal que, não raramente, ao retornar, o levava diretamente ao hospital.[98]
Por esse motivo, passados dez anos da fundação, embora se tivesse organizado uma assistência espiritual aceitável para as condições da Ordem e se tivessem estabelecido estruturas básicas para o funcionamento da Prelazia, os desafios a enfrentar continuavam sendo enormes. Em primeiro lugar, as perspectivas econômicas do território acreano não eram boas, uma vez que a principal riqueza da região, a borracha, vivia um momento de crise: seu preço despencou e fez com que sua extração se tornasse impraticável. Além disso, para se manterem, os frades continuavam a depender da ajuda da Europa e, mesmo pastoralmente, longe estavam da situação ideal. Frei Gregório Dal Monte, no relatório escrito em 1930, apresentava um quadro preocupante:
Já são dez anos que os Servos de Maria trabalham na Prelazia do Alto Acre e Alto Purus. […] A Prelazia não possui patrimônio nem fonte de renda com os quais possa contar com segurança. Mesmo as eventuais entradas são bastante reduzidas, devido aos graves erros cometidos desde nossa chegada, sem excluir a crise econômica que se agrava sempre mais. Este foi o nosso erro: convencidos de que a maior dificuldade dos fiéis era a falta de recursos, para convencê-los mais facilmente a batizarem seus filhos e a abençoarem suas uniões matrimoniais, foram quase sistematicamente dispensados de fazer a oferta costumeira.
Das viagens para o serviço religioso, das quais os sacerdotes que nos precederam voltavam com somas consideráveis, Dom Próspero volta sempre com alguma dívida. […] Pensam que somos ricos. […] Hoje, em todas os lugares, os frades e as irmãs vivem em moradias consideradas boas para o lugar, com relativo conforto e com comida boa e abundante.
Os incômodos mais graves que não se podem evitar são os provocados pelas viagens pelo interior das matas e ao longo dos rios, alguns dos quais insalubres, onde geralmente se contraem as febres que tanto fazem sofrer os habitantes desta região. As viagens são necessárias porque, estando o povo disperso numa região muito vasta, é preciso que o missionário vá ao encontro dele e administre os santos sacramentos em lugares pré-determinados, mais ou menos eqüidistantes das moradias, depois de avisar o dia de sua chegada. […] Tristíssimas são as condições morais do Acre. […] Ao lado do cearense, homem de fé, um pouco supersticioso, mas honesto, […] está o aventureiro sem escrúpulos, que quer enriquecer a qualquer preço […].
Nesse difícil campo, como vimos, os Servos de Maria, em dez anos de trabalho, tornaram-se sobremodo beneméritos, obtendo resultados indiscutíveis e colhendo frutos abundantes. […] Sem os Servos de Maria, Sena Madureira teria morrido, disse um orador oficial na inauguração do Colégio Santa Juliana. Embora o autor se referisse à parte material, não deixa de ser verdade que o mesmo se pode dizer também do trabalho espiritual realizado. […] É preciso [porém] fazer o mea culpa: embora animados de boas intenções, quisemos implantar no Acre um regime excessivamente rigoroso. Para provar isso, basta citar as palavras de Dom Próspero: “Devemos usar de muito rigor, para que assim os maus que estão dentro na Prelazia se vão embora, e os que estão fora não entrem”. Os efeitos foram muito diferentes: bons e maus se afastaram, não da Prelazia, mas da Igreja!”[99]
Só depois mudou-se a metodologia. Nem todos os missionários resistiram à dureza do trabalho intenso e à inclemência do ambiente. Desde o começo, o problema se apresentou com toda a sua dramaticidade, também devido às penosas condições de moradia existentes. Dom Próspero Bernardi, ao falar da “pobreza de moradia” foi enfático: “Os frades e as irmãs são obrigados a instalar-se ou na sacristia ou na pequena igreja ou em casas mal improvisadas, e isso torna cada vez mais prejudicial o efeito do clima insalubre. […] Os missionários e as irmãs são atacados pela terrível febre”.[100]
Se a situação em casa era difícil, pior ainda era quando se devia viajar. Era fácil contrair doenças como o tifo, porque as caixas d’água para toda a viagem eram abastecidas em Belém ou Manaus, e se tomava do mesmo líquido até por mais de um mês. O clima quente favorecia a proliferação de micróbios, e muitos passageiros preferiam beber a água corrente dos rios, de aspecto pouco atraente, mas menos perigosa. Em todo caso, para evitar a terrível ameaça do tifo, os meios mais eficazes eram dois: viajar de avião ou fazer uso das vacinas disponíveis que podiam ser tomadas via oral ou por injeção.[101]
O serviço aéreo em território acreano foi implantado por Epaminondas de Oliveira Martins, governador do Acre de 1937 a 1942. Sendo médico, criou esse serviço também para resolver os constantes problemas de saúde do território. Assim, com grande esforço, construiu os campos de aviação na sede dos sete municípios do território de sua jurisdição: Rio Branco, Xapuri, Sena Madureira, Vila Feijó, Vila Seabra e Cruzeiro do Sul. Comprou duas aeronaves, contratou os pilotos e pôs em funcionamento um serviço semanal de correio e de passageiros entre os municípios citados.[102] Mas uma questão ficou sem solução, isto é, o preço a pagar, que era elevadíssimo. Um exemplo: a companhia de aviação brasileira PANAIR fazia a linha Rio Branco – Rio de Janeiro, a um preço de mais de 5.000 liras da época.[103]
De qualquer forma, a novidade, associada à melhoria da assistência médica, fez baixar o número de vítimas entre os Servos de Maria, encurtando também os longos e entediantes períodos de convalescência, como o que descreveu frei Tiago Mattioli em 20-8-1921:
Os meses de maio, junho e julho, eu os passei doente de impaludismo, e mesmo agora estou ainda longe de ter a mesma saúde e energia de antes. […] Estou sempre ou quase sempre deitado na minha rede, com um calor sufocante, muitas vezes de 40 graus, […] e, apesar disso, bato os dentes de frio. […] De resto, é quase impossível encontrar nesta região uma só pessoa que não tenha contraído o impaludismo: é o triste tributo que todos devem pagar, é o batismo, se não de fogo, pelo menos de sangue.[104]
Frei Tiago conseguiu recuperar-se, mas nem todos tiveram a mesma sorte. Foram relativamente poucas as vítimas entre os frades e irmãs Servas e Maria Reparadoras, mas sua perda foi deveras dolorosa, visto o número exíguo de missionários nesse período. Eis os seis que faleceram nos primeiros anos:
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Irmã Letícia Bordignon (1891-1927): Serva de Maria Reparadora, nascida em Belvedere di Tezze, província de Vicença, Itália, falecida em Sena Madureira em 15-5-1927, um mês apenas depois de sua chegada, vítima de infecção intestinal contraída na viagem.
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Irmã Gabriela Nardi (1896-1935): coirmã de Letícia, nascida em Nogarole-Chiampo, província de Vicença, Itália, morreu em Xapuri em 15-8-1935. Chegada ao Acre em 1927, dedicou-se aos trabalhos pastorais e catequéticos e conseguiu converter no leito de morte um maçom de nome Eduardo Soares, anticlerical convicto. Quinze dias depois do fato, ela contraiu uma forma grave de icterícia que a levou à morte. Mas sua dedicação produziu um lindo fruto: mais tarde, uma das filhas de Eduardo Soares se tornaria irmã Serva de Maria Reparadora e tomaria o nome de irmã Gabriela.
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Frei Donato Gabrielli (1890-1936): Nascido em San Benedetto Val di Sambro, arquidiocese de Bolonha, Itália, recebeu o hábito da Ordem em 28-2-1905 e emitiu a profissão solene em 24-12-1914. Ordenado sacerdote em 18-9-1920, no ano seguinte manifestou o desejo de trabalhar nas missões e foi atendido. Veio para o Brasil junto com os confrades frei Bonajunta Busi, frei Filipe Gallerani e frei Egídio Muscini. Esteve primeiro em Sena Madureira. Depois de um ano, mudou-se para Rio Branco para ajudar frei Tiago Mattioli, atacado pelo impaludismo (malária). Mas ele também, numa desobriga, contraiu a mesma doença. Conseguiu recuperar-se e continuou trabalhando, mas a doença voltou a atacá-lo, e o laborioso missionário teve que transferir-se para o Rio de Janeiro em busca de tratamento. Apesar de todos os cuidados médicos, foi piorando sempre mais e acabou falecendo em 12-3-1936, com apenas 46 anos de idade.
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Fr. Bonajunta Busi (1863-1936): tinha 73 anos e, depois de alguns anos no Acre, adoeceu e voltou para a Itália, vindo a falecer em Forlì em 1936.
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Frei Aleixo Rattalino (1866-1940): Nascido em Bra (Turim), Itália, vestiu o hábito clerical em 1882 e foi ordenado sacerdote secular em 22-12-1888. Em 1898 decidiu ingressar na Ordem dos Servos de Maria. Em 1914 foi enviado para a Argentina e, em 1924, chegou à missão do Acre. Em abril de 1935 contraiu pela segunda vez a malária, que o obrigou a ficar de cama vários meses. Em 22-12-1938, celebrou 50 anos de ordenação sacerdotal. Todavia, o terceiro ataque da malária, diagnosticada em 17-6-1940, foi fatal. Já enfraquecido, seu corpo não resistiu e morreu em 14 de julho do mesmo ano.
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Frei Egídio Rovolon (1909-1940): Fidei donum da Província Vêneta, conhecido como “o apóstolo de Sena Madureira”, nasceu em Isola Vicentina, província de Vicença, Itália, em 17-8-1909. Foi ordenado sacerdote em 10-7-1932. Era arquiteto, dotado de espírito vivaz e empreendedor. Por isso, manifestou o desejo de partir para as missões. Chegou no ano seguinte ao Rio de Janeiro, onde permaneceu alguns meses para aprender a língua portuguesa. Depois, partiu para o Acre.
Estava construindo a igreja de Sena Madureira quando pediu para passar um período de férias no Rio de Janeiro. Na volta, em 24-5-1940 embarcou no navio a vapor Santos da Lloyd Brasileira e chegou a Manaus dia 11 do mês seguinte. Ficou ali duas semanas, hóspede dos Salesianos, quando se deu conta que havia esquecido de trazer as preciosas vacinas. Apesar disso, dia 25 de junho, decidiu seguir viagem em companhia de frei Agostinho Poli e da irmã Constantina Gian, das Servas de Maria Reparadoras.
Em 4 de julho, começou a sentir-se mal, e o médico de bordo pensou primeiro que fosse alguma forma de gripe, depois um ataque de malária. Mas, no terceiro dia manifestaram-se claramente os sintomas do tifo. Logo foi-lhe aplicada a injeção contra o tifo, mas já era tarde. Dia 10 começou a delirar, piorando progressivamente. Estava já em fim de vida quando, em 14 de julho, chegou a Boca do Acre. Julgou-se inútil levá-lo em terra firme. Às 14:30, recebeu a Extrema Unção das mãos de frei Agostinho, e às 15:15, expirou. Tinha apenas 31 anos incompletos. Às 18h, seu corpo, vestido com os paramentos sacerdotais, foi transportado para a capela do lugar, onde na manhã seguinte frei Agostinho celebrou a missa fúnebre. Foi sepultado no cemitério local, situado exatamente na confluência dos dois rios, Acre e Purus, que eram a porta de entrada da prelazia confiada aos Servos de Maria.[105]
3.7 – Início do “disciplinamento” da piedade popular
Era comum os religiosos regulares europeus recém-chegados à Amazônia, ficarem, de certa forma, estupefatos diante de algumas manifestações da religiosidade popular. Tal piedade desenvolvida fora dos cânones litúrgicos foi logo enfrentada pelos Servos de Maria, que tudo fizeram para enquadrá-la segundo as normas, inclusive com medidas drásticas. O relatório de frei Tiago Mattioli, escrito em 2-1-1921 e dirigido ao Prior Provincial da Romanha mostra a reação de alguns religiosos nestes casos:
Cheguei aqui [a Xapuri] dia 23 de novembro à tarde, enquanto na igreja de São Sebastião, em construção, celebrava-se a novena de Natal. Faltava, naturalmente, o padre, e fazia as vezes dele uma jovem, enquanto outras jovens cantavam, acompanhadas por um trombone e uma corneta.
[…] Na igreja, homens que entram de chapéu na cabeça e fumando tranquilamente; meninos que correm uns atrás dos outros berrando; gente que conversa em voz alta para fazer-se ouvir no meio da confusão.
Na praça da igreja, quase à porta, alguns, aos berros, jogam roleta ou dados, outros vendem doces e café, outros ainda praguejam contra a sorte. E todo esse barulho é como se fosse dentro da igreja, uma vez que as sete grandes portas estão escancaradas, e as janelas, sem vidro. No meio dessa confusão toda, uma voz trêmula vinda do altar fica sufocada; ninguém entende nada, ninguém responde, e depois de certo tempo a orquestra começa mais uma barafunda à qual se dá o nome de ladainhas.
Terminada a novena (!), o povo dirige-se à praça onde se junta aos que não se deram o trabalho de entrar na igreja, e ali começam a gritaria, a jogatina e as danças imorais. O cúmulo de tudo isso é que, quando tudo acaba, a igreja se transforma em depósito de mesas, cadeiras e dos nojentos instrumentos de jogo. […] Propus-me usar de moderação para acabar com os abusos; mas fui tomado por um nervosismo tal que, por três ou quatro dias, fiquei muito mal, e passei um Natal como se pode passar em tais condições. Celebrei à meia noite e falei ao povo, mas com os nervos à flor da pele. Não conhecendo ninguém, comecei a protestar contra todos. Para conseguir um pouco de silêncio e de ordem na igreja, eu também pus-me a gritar. Levei a minha ousadia até a praça, ameaçando fechar a igreja e suspender a novena, se não parassem com jogatina e a venda de produtos durante a celebração. […] Na igreja, em pouco tempo, consegui impor uma certa (mas muito incerta) ordem; quanto aos que se davam à jogatina, foi uma luta à parte. Pararam de fazer da igreja um depósito, mas não pararam de vender coisas durante as novenas, que deviam se prolongar até 6 de janeiro. Mais uma vez ameacei suspender a novena, mas com resultados negativos. Teimosos eles, teimoso eu também! E desde ontem à noite lancei mão do expediente de não celebrar mais a novena até que as bancas de jogatina fossem retiradas da praça e levadas pelo menos a uma distância de cem metros.[106]
No interior dos templos, exigia-se respeito ao lugar sagrado, e na liturgia os “clássicos” da música sacra substituíram os cantos populares em língua vernácula. Nisso destacou-se frei Miguel Lorenzini, o qual, com muito esforço, conseguiu que as Ladainhas, o Stabat Mater, Tantum Ergo, O Salutaris Hostia e as invocações próprias dos Servos de Maria se tornassem de uso corrente.[107] As mudanças impostas provocaram uma rápida metamorfose no ritual, como registrou Dom Próspero Bernardi ao descrever a celebração de Natal de 1922:
Que diferença do Natal do ano passado! No ano passado eu estava sozinho nas celebrações e vestia, na ocasião, uma casula branco-escura (único paramento que tinha então comigo). Neste ano, pelo contrário, quase um pontifical ao completo. Somos três padres (frei Bonajunta foi celebrar em outro lugar); as melodias gregorianas dão um tom de majestade ao rito sagrado; a presença das irmãs incute reverência nos participantes que lotam literalmente a igreja; uma dúzia de almas piedosas que recebem a santa comunhão completa o quadro gracioso que apresentava pela primeira vez a igreja principal de Sena Madureira na noite de Natal. Não faltou sequer a melodiosa harmonia da “pastoral” de Tebaldini de Loreto, que deu a todo o conjunto uma aparência poética dos primeiros adoradores do sublime mistério celebrado.[108]
Ao mesmo tempo, a pastoral foi completamente revista, dando-se maior importância à catequese e aos sacramentos. Desta forma, a eficiência de um sacerdote era medida pelo número de batizados e matrimônios que celebrava e das confissões que ouvia. Toda celebração sacramental era revestida de muita solenidade, como ocorria com a primeira comunhão, quando os meninos vestiam-se de marinheiros ou de terno completo, ao lado das meninas, vestidas como noivas. Diga-se, porém, que catequizar as crianças não era coisa fácil: os meninos eram inconstantes e com muita facilidade faltavam às aulas de catequese. Normalmente, seguindo o exemplo dos adultos, uma simples antipatia por um colega era motivo para que um menino não quisesse voltar às aulas. Além disso, havia o problema dos pais que, não tendo recebido uma instrução doutrinal mínima, não se importavam que os filhos ficassem ignorantes em matéria religiosa. A solução para garantir a presença das crianças foi no mínimo curiosa: quem tivesse 30 presenças ganhava o primeiro prêmio, quem tivesse 25 presenças, o segundo, e quem tivesse quinze presenças, o terceiro.[109]
A figura do clérigo – e, em menor medida, da freira -, tornou-se central. Tocava a ele instruir e controlar as associações leigas que surgiam, em tudo semelhantes às congêneres européias. As mais importantes eram a “Confraria de Nossa Senhora das Dores”, cujo objetivo era promover obras de moralidade e de caridade; a “Pia União das Filhas de Maria”, encarregada de estimular a piedade e a formação cristã da jovens da cidade; e, por fim, os “Congregados Marianos”, eles também com a missão de testemunhar o catolicismo na sociedade e no mundo. Características comuns de todas as associações leigas católicas eram a devoção à Eucaristia, a correlação entre o aspecto religioso e social (no sentido assistencial) e a participação nas festas populares religiosas como os arraiais. Foi graça a essas associações que as missas dominicais, as ladainhas, as novenas e todas as práticas de piedade passaram a fazer parte do cotidiano da população católica.
Ao mesmo tempo, os Servos de Maria popularizaram as devoções próprias da Ordem, ou pelo menos procuraram fazê-lo. Foi o caso da substituição das antigas imagens com outras representando Nossa Senhora das Dores, São Peregrino Laziosi, Santa Juliana Falconieri, Sete Santos Fundadores e São Filipe Benizi, apesar dos protestos de muitos fiéis.
Sena Madureira, na condição de sede da Prelazia, sofreu logo a mudança de rota, graças principalmente à iniciativa de frei Miguel Lorenzini. Sem perder tempo, ele convocou as Filhas de Maria e encarregou cada uma delas de encontrar e apresentar duas meninas para serem admitidas à Primeira Comunhão. Depois, ensinou um grupo de rapazes a cantar as partes fixas da missa em gregoriano; enquanto isso, as irmãs faziam o mesmo com as meninas, postas sob seus cuidados, resultando daí dois coros bem afinados, que daquele momento em diante se tornaram presença constante nas celebrações. Sem perceber, os frades promoviam uma “europeização” propriamente dita, como o comprova uma declaração feita em Sena Madureira em 10-1-1932, referente à organização de uma festa religiosa: “Estava programada uma procissão noturna à veneziana (o grifo é do autor) para recordar a procissão com velas de Éfeso, mas motivos de prudência aconselharam a fazer a procissão de dia…”. O ponto alto, porém, eram as grandes celebrações, quando predominava o assim-chamado “triunfalismo litúrgico”, que era descrito em cores vivas:
Os neo-comunicandos, saindo do Colégio Santa Juliana dirigiram-se em procissão, cantando, até a igreja. Isso produziu efeito tal que um pastor protestante, recém-chegado para animar seus seguidores, ao ver este imponente espetáculo, achou melhor ir embora com a primeira embarcação, deixando seu rebanho nas mãos… da Providência Divina, a qual – como é lícito pensar – implorada pela Virgem Santíssima, fez com que os fiéis dissidentes diminuíssem de número e acabassem por abandonar suas reuniões públicas, e esperamos para sempre. [110]
Mais modestos, porém, foram os resultados em Xapuri e Brasiléia. Mas, em compensação, as mudanças políticas que aconteciam então no Brasil se tornariam de grande ajuda. Como vimos acima, a república laica implantada no país em 15-11-1889 não era anticlerical, mas isso não bastava para a igreja, que queria um reconhecimento público e oficial. A revolução de 1930, comandada por Getúlio Dorneles Vargas, marcou o início da concretização desse sonho. Cada Estado da Federação, por sua conta, já havia eliminado os aspectos mais intransigentes da legislação. E o Acre não foi exceção. Assim, no final de 1931, o ensino religioso foi sancionado e proclamado oficialmente.[111]
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Fundação da Congregação das Servas de Maria do Brasil e abertura da comunidade do Rio de Janeiro
O primeiro Servo de Maria a aportar no Rio de Janeiro foi frei José Albarelli, que ali permaneceu alguns meses antes de ir para o Acre. Durante esse tempo, ele pode conhecer as potencialidades locais, além de fazer amizade com o arcebispo coadjutor, Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942), que havia sido terciário da Ordem no tempo em que residira no Colégio Pio Latino-Americano, em Roma, onde estudava na Pontifícia Universidade Gregoriana. Nesse mesmo tempo, também Dom Próspero Bernardi esteve no Rio, e Dom Sebastião Leme propôs a ambos que a Ordem se estabelecesse na metrópole. Tratando-se de uma questão que dependia o Prior Geral, eles nada puderam decidir, mas iniciaram uma intensa correspondência com Roma para que uma decisão fosse tomada.[112]
A conjuntura impelia para a aceitação da proposta, uma vez que, entre as outras coisas, as doenças tropicais continuavam a atacar os Servos de Maria na Amazônia e a região não possuía uma estrutura hospitalar adequada. Rio de Janeiro, além de responder a essa necessidade, era estratégica por vários motivos: era a capital federal e sede do Núncio Apostólico e, encontrando-se numa região muito mais desenvolvida do país, podia responder às necessidades materiais da missão. Por isso, o Prior Geral, frei Luís Tabanelli, em carta datada de 31-3-1924 autorizou a Ordem a estabelecer-se nessa cidade. E no dia 19 do mês seguinte, Dom Próspero Bernardi escreveu ao Núncio Apostólico, Dom Henrique Gasparri, para comunicar-lhe o fato:
Por um profundo sopro de inspiração do Ex.mo arcebispo coadjutor, Dom Sebastião Leme, um frade daqui, frei Tiago Mattioli O.S.M., chegará a esta capital, em parte para recuperar totalmente a saúde, e em parte para concretizar o projeto de assumir a capelania do Colégio Diocesano São José, junto com outro frade que virá da Itália.[113]
Frei Tiago Mattioli, que havia contraído a malária em 26-5-1924, foi autorizado pelos superiores a mudar-se para o Rio para tratamento de saúde. Partiu dia 6 de maio do mesmo ano, chegando à capital federal dia 13 de junho. Acolhido, como combinado, no Colégio São José, então dirigido pelos Irmãos Maristas, viu-se hospedado num grande edifício, outrora sede do seminário arquidiocesano, sito à Avenida Paulo de Frontin. Como fora previamente estabelecido, em 1º de julho de 1924, Dom Sebastião Leme, capelão do Colégio, foi nomeado arcebispo auxiliar da arquidiocese.
Em 18-1-1925, vindo da Itália, chegou ao Rio frei Gregório Dal Monte que, em 4 de maio, assumiu as funções de capelão da Escola Maria Raythe, das irmãs de Nossa Senhora do Amparo, situada à Rua Haddock Lobo, na Tijuca. Pouco antes, em 15 de março, ele e frei Tiago haviam fundado o Centro da Pia Obra das Missões da Ordem, que tinha por objetivo ser um ponto de apoio para a Ordem na Amazônia e preparar uma fundação definitiva no Rio.[114]
A Pia Obra foi bem sucedida e conseguiu em pouco tempo agrupar 32 membros efetivos (“zeladores” e “zeladoras”), ao lado de uma centena de associados. Graças à sua colaboração, desde a fundação até 31 de dezembro de 1925, foram arrecadados $ 2.700.400,00 (ou seja: 2 contos, 700 mil e 400 réis). Acrescente-se que muitos artigos enviados ao Acre foram adquiridos a preço reduzido e muitos outros foram doados pelos fiéis. A companhia de navegação Lloyd Brasileiro transportou gratuitamente muitas encomendas. Ao mesmo tempo, os frades prestavam outros serviços à Prelazia, como intermediar as relações com as autoridades da capital, representar a Caixa Rural de Sena Madureira (fundada em 25-3-1922 e extinta em abril de 1931) junto ao Congresso de Crédito Agrícola, publicar artigos nos jornais A União, A Cruz, La Squilla, e preparar uma edição comemorativa do ano santo publicada pelo Jornal do Comércio.[115]
A nascente comunidade do Rio de Janeiro permaneceu fiel ao seu objetivo de acolher os frades Servos de Maria doentes que, no Acre, continuavam sendo vitimas das gravíssimas doenças tropicais. Assim foi que, em 19-5-1924, desembarcou no Rio frei Donato Gabrielli, ele também vítima da malária. Não sendo mais possível hospedá-lo no Colégio dos Irmãos Maristas, foi acolhido por duas benfeitoras da Ordem no Rio Comprido: Maria Albertina de Melo e Clara Maria Pinto de Melo. Com o aumento do número de frades, fez-se necessário providenciar uma casa própria. Como faltasse dinheiro, os frades fizeram um empréstimo. Para isso, em 28-7-1925, frei Tiago Mattioli escreveu ao Núncio Apostólico, Dom Henrique Gasparri, pedindo autorização. O Núncio respondeu afirmativamente e, no dia seguinte, escreveu ao Prefeito da Sagrada Congregação dos Religiosos, cardeal Camilo Laurenti, comunicando sua decisão: “O superior dos frades Servos de Maria desta cidade, devendo, com a permissão de seus superiores, contrair um empréstimo de quarenta contos de réis para aplicar em obras urgentes, pediu-me autorização. Diante da situação, resolvi acatar seu pedido”.[116] O empréstimo seria pago graças à ajuda de benfeitores.
E assim, em meados do mês de agosto seguinte, os frades se estabeleceram no Bairro São Cristóvão, numa casa da Rua São Luís Gonzaga, n.º 358, adquirida do Sr. Dr. Francisco de Paula Lacerda de Almeida. Ao lado da casa havia uma pequena capela dedicada à Sagrada Família, onde, no dia 23 de agosto, foi celebrada a missa. Nem todos os frades se transferiram para a nova residência: frei Gregório Dal Monte sim, mas frei Tiago Mattioli e frei Donato Gabrielli preferiram permanecer no Colégio Marista.
A esta altura, o contínuo afluxo de Servos de Maria deu ao Rio de Janeiro uma notável importância estratégica, motivo porque, quando chegou da Itália em 25-11-1925, frei Júlio Mattioli acabou ali permanecendo até 27 de julho do ano seguinte.
Outros fatos importantes registraram-se em seguida. Em primeiro lugar, em 26-12-1926, os frades tiveram que abandonar a casa da Rua São Luís Gonzaga, comprada em julho do ano anterior, que se tornara inadequada, e alugaram outra, na Rua Aristides Lobo, nº 170, onde montaram em seguida uma capela pública e fizeram a primeira experiência no campo da formação. Em 1936, a antiga casa da Rua São Luís Gonzaga, comprada por $ 40.000,00, foi vendida por $30.000,00 apenas, e o dinheiro foi aplicado na nova propriedade do Rio Comprido.[117]
Antes disso, em 1927, chegara ao Rio de Janeiro outro frade presbítero da Província da Romanha, nascido em 1886, frei Gabriel (Luís) Dall’Olio, o qual, por motivos de saúde, voltou para a Itália no ano seguinte.[118]Infelizmente, acontecimentos subseqüentes de tal forma atormentaram a sua vida que acabou sendo demitido da Ordem em 5-7-1930.
Enquanto isso, a comunidade carioca continuou seu processo de organização e, em 29-5-1929, solenidade de Pentecostes, foi fundada a Ordem Terceira OSM, composta de um pequeno grupo de homens e mulheres. Ao mesmo tempo, outro fato provocou mudança nas atividades dos frades: os Irmãos Maristas, tendo construído um novo e imponente Colégio na Tijuca, em 1932 deixaram o velho prédio do Rio Comprido, que retomou suas atividades como seminário arquidiocesano. Isso levou os frades, que moravam com os Maristas e que já eram conhecidos dos fiéis, a tomar a decisão de não abandoná-los, mas de continuar trabalhando com eles na Tijuca.
A primeira missa na nova capela da Rua Aristides Lobo foi celebrada em 12-2-1932. No ano seguinte, foi oferecida à Ordem uma paróquia na Ilha do Governador, mas as tratativas para a cessão da mesma não prosperaram, porque o pároco diocesano, que devia ser transferido, abandonou a mesa de negociações.[119]
Interessante constatar que, na Argentina, frei Celso Milanesio, sem conhecer exatamente o que faziam os frades no Rio de Janeiro, escreveu ao seu Provincial da Província do Piemonte, fazendo um pedido insólito:
Tive uma idéia que me parece bem expressar. No Rio de Janeiro há três frades quase inutilizados para o trabalho de missão no Brasil e ali estão dando assistência a um Colégio de Maristas e a conventos de freiras. Não poderia pedir ao Prior Geral que envie pelo menos um deles para o nosso colégio na Argentina? Se viessem dois, melhor ainda! Aqui poderiam ser mais útil à Ordem e nos prestariam um ótimo serviço.[120]
Como é óbvio, tal proposta não foi sequer tomada em consideração. Enquanto, isso, frei Tiago e frei Donato continuaram procurando um lugar definitivo na capital federal para sediar o convento e uma igreja em honra de Nossa Senhora das Dores. Nesse projeto de estabilidade não se omitia nenhum detalhe, e foi até encontrado o lugar para sepultar os confrades que eventualmente viessem a falecer no Rio de Janeiro. Daí se explica a alegria com que frei Tiago escreveu ao Prior Geral em 7-12-1933: “Já comprei um terreno próximo ao túmulo dos padres jesuítas no cemitério São João Batista”.[121]
4.1 – Posse da igreja de Nossa Senhora da Guia e organização do novo convento do Rio Comprido
Na época, apareceram muitas ofertas de lugares onde os Servos de Maria poderiam construir a sua igreja, mas foram descartadas por vários motivos, principalmente pela falta de dinheiro. Frei Tiago então entrou em contato com as Servas de Maria Reparadoras, que se haviam estabelecido no Rio em 1932 e trabalhavam em Campo Grande, no orfanato Arthur Bernardes, que lhes fora entregue pelo governante do lugar.
No início de 1933, frei Tiago convenceu-se ser de bom alvitre assumir a igreja de Nossa Senhora da Guia, situada à Rua Lins de Vasconcelos, nº 699, num lugar denominado Boca do Mato, no bairro do Meyer. Autorizado pelos superiores, tomou posse em 13 de junho do mesmo ano. Tal decisão agradou ao cardeal arcebispo, Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra. Depois disso, o cardeal autorizou os Servos de Maria a permanecerem também no bairro do Rio Comprido, ali estabelecendo a sua sede. Dêssa forma, constituíram-se duas comunidades da Ordem na cidade. No entanto, a igreja de Boca do Mato era pequena e situada numa colina; por isso, ao entregá-la aos Servos de Maria, o cardeal disse claramente que devia ser construída outra igreja, do contrário não seria erigida a paróquia.
No final de 1932, chegou do Acre frei André Van Halder, também vítima da malária. Frei Donato, por sua vez, pensando estar curado, foi a Itália e, pouco tempo depois, ao Acre, mas, devido a uma doença de pele, teve que voltar novamente para o Rio de Janeiro, onde veio a falecer pouco tempo depois.
Portanto, no início de 1934, a situação dos frades na fundação carioca era a seguinte: na paróquia Nossa Senhora da Guia, onde havia uma casa ainda não erigida canonicamente, era pároco frei Tiago Mattioli, que mantinha o título de prior da casa da Rua Aristides Lobo, embora lá não residisse. A ele juntou-se depois o irmão leigo frei Egidio Muscini, pelo motivo de sempre: também havia contraído a malária.
A segunda comunidade, isto é, a da Rua Aristides Lobo, embora tivesse ficado três anos sem um prior residente, fora canonicamente erigida mediante rescrito da Sagrada Congregação dos Religiosos em 10-7-1934. Ali viviam estavelmente frei Agostinho Bellezze (mais conhecido por “Monsenhor Bellezze”, chegado ao Rio em 27-7-1933, proveniente da Suazilândia, África do Sul, onde havia sido Prefeito Apostólico) e, por pouco tempo, frei Donato Gabrielli, além de frei André Van Halder, frei Ugo Poli e frei Egídio Rovolon.[122]
A situação ambígua das duas comunidades só acabou em 10-9-1936, quando o Prior Geral, frei Rafael Baldini, durante a visita canônica, decretou a separação da casa do Rio Comprido da casa de Boca do Mato.[123]
Com relação à paróquia de Boca do Mato, constatando-se que a casa não era adequada nem para receber vocações e nem para sediar estavelmente uma comunidade da Ordem, procurou-se dentro dos limites do seu território um lugar mais apropriado para deslocar o centro de atividades. Encontrado o lugar na Rua Carolina Santos, nº 134, no cruzamento com a Rua Carijós, n.º 3, em 12-9-1934, foi assinada a escritura de compra do terreno. Em seguida, o Sr. Ernesto Mancini foi formalmente encarregado de comandar os trabalhos de construção do novo templo dedicado aos Sete Santos Fundadores, segundo o projeto submetido ao Conselho Geral e aprovado com algumas emendas.[124]
A bênção da pedra fundamental da igreja de estilo ligeiramente gótico deu-se às 3 horas da tarde do dia 12-3-1937, na presença de Dom Benedito Paulo Alves de Souza (1873-1946), prelado de Orisa, dos frades Servos de Maria do Rio de Janeiro e de amigos e convidados. A construção foi iniciada com apenas 15 contos de réis, mas, graças aos esforços dos frades e às contribuições dos fiéis, os trabalhos progrediram rapidamente, de tal forma que em 6-11-1938 a igreja-matriz foi finalmente transferida. Obviamente, a igreja original de Nossa Senhora da Guia não foi abandonada e os frades continuaram celebrando nela.
Outro dado interessante foi que o deslocamento da sede paroquial provocou divisão entre os fiéis. Isso explica porque a mudança foi feita sem solenidade e sem aviso prévio. De qualquer forma, a consagração da nova igreja dos Sete Santos, celebrada por Dom Benedito em 10-7-1938, deu-se sem incidentes.[125]
Quanto à sede definitiva da outra casa da Ordem no Rio, os frades encontraram um lugar apropriado na Avenida Paulo de Frontin, nº 500, numa propriedade pertencente à Sra. Maria Cardoso Martins. Mas o imóvel custava $ 240.000. O recurso foi fazer um empréstimo de 150.000 liras italianas da caixa da Ordem. Finalmente, em 22-3-1934, foi aprovado o contrato de compra, assinado por frei Tiago Mattioli. Em 2 de maio do mesmo ano, os frades se mudaram para a casa ali existente, que só foi oficialmente inaugurada dia 18. Dois dias depois, em 20 de maio, na solenidade de Pentecostes, a imagem de Virgem Maria foi levada em procissão da Rua Aristides Lobo para a capela contígua à casa dos frades, os quais logo puseram mão à obra. Para a nova capela mudaram-se também a Confraria das Sete Dores e a Ordem Terceira, erigidas em 1926. No novo endereço, os frades continuaram a promover as devoções da Ordem, ensinavam catecismo às crianças, promoviam as pias associações e todo tipo de atividade religiosa, de forma que, em pouco tempo, a pequena capela se tornou um lugar de grande afluência popular e de práticas devocionais.
Neste ínterim, também os frades mudaram: em 27-2-1935 frei Egidio Rovolon mudou-se para o Acre, onde veio a falecer pouco tempo depois, sendo substituído por frei Gregório Dal Monte, doente de malária. Junto com ele estavam frei Peregrino (Ugo) Poli e frei Agostinho Bellezze, que ali chegaram com a idéia de construir um santuário nacional dedicado a Nossa Senhora das Dores.
Em 15-6-1936, a arquidiocese autorizou a construção do templo, e no dia 27 de outubro seguinte, reunidos em capítulo conventual, os quatro frades do Rio, sob a presidência de frei Gregório, examinaram e aprovaram o projeto da futura igreja, feito pelo arquiteto Ferruccio Brasini. Tratava-se de uma construção de estilo neoclássico, com alguns lineamentos barrocos, em forma de cruz latina. O prior ponderou que, em se tratando de uma obra destinada a perpetuar-se no tempo, era conveniente que fosse digna de ser transmitida aos pósteros; e, quanto às despesas, era melhor fazer a construção devagar, de acordo com a entrada das ofertas, do que fazê-la às pressas, em detrimento da grandiosidade, da solidez e da estética. [126]
O consensus pro ecclesia do Prior Geral, frei Rafael Baldini, chegou em 22-11-1936, e a primeira pedra foi abençoada e colocada em 18-4-1937 pelo cardeal Dom Sebastião Leme. Mas, nesse mesmo ano, por falta de recursos, os trabalhos foram suspensos. As atividades religiosas, porém, continuaram normalmente. Uma parede de zinco foi colocada entre a parte já construída e a parte a construir, e ali se realizavam todas as celebrações. Em maio de 1942, os trabalhos foram reiniciados, graças principalmente à ajuda dos fiéis que freqüentavam a igreja.[127]
Também o convento foi completamente refeito. A decisão foi tomada no capítulo conventual de 23-3-1941. O motivo principal foi que a casa era de tal modo decrépita que as autoridades municipais tinham ameaçado interditá-la, caso não fossem tomadas medidas urgentes. Diante disso, foram levantadas algumas propostas: uma propunha fazer uma nova construção no lado oposto da Avenida Paulo de Frontin; outra, construir o novo convento ao sul da igreja; e a terceira, levantar a casa ao lado da igreja ao longo da mesma Avenida Paulo de Frontin.[128] Prevaleceu a terceira proposta. E, em 19 de junho do mesmo ano, foi colocada a primeira pedra do convento de três andares, ainda hoje a serviço da comunidade.
Enquanto isso, com a Segunda Guerra Mundial, a comunidade dos Sete Santos teve que adequar-se às novas circunstâncias, como registra o Livro de Crônicas do convento:
19 de agosto [1942]: Hoje as relações do Brasil com a Alemanha e a Itália tiveram um triste epílogo: a guerra. […] O vigário, frei Tiago, devido ao estado de beligerância entre Brasil e Itália, apresentou-se espontaneamente ao vigário geral da arquidiocese, dispondo-se a renunciar ao cargo, caso sua permanência à frente da paróquia pudesse causar algum embaraço ao governo diocesano. A renúncia foi aceita oito dias depois, junto com a de todos os vigários súditos do Eixo. O Rev.do Pe. frei André Van Halder, cidadão norte-americano, foi investido das funções de encarregado da paróquia.
A bem da verdade, o amanuense, frei Tiago Mattioli, declara que nada sofreu, nem das autoridades, nem de quem quer que seja, por sua condição de italiano, a não ser a retirada do telefone da casa paroquial por parte da Companhia Telefônica Brasileira.[129]
A Ordem, porém, não tinha número suficiente de frades para manter duas comunidades no Rio. Por isso, com a licença do Arcebispo, toda a propriedade do Meyer foi cedida à Congregação dos Padres do Sagrado Coração, em troca de determinada indenização pelas obras construídas pelos Servos de Maria. Frei Peregrino Bellezze, como delegado especial do Comissário Provincial, fez a entrega da propriedade às 19:30h do dia 19-3-1945, numa cerimônia presidida pelo Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara (1894-1971).[130] O novo arcebispo do Rio fora transferido de Belém em 3-7-1943, em substituição a Dom Sebastião Leme, falecido em 17 de outubro do ano anterior.
Logo em seguida, o território paroquial foi dividido: a antiga igreja de Nossa Senhora da Guia manteve o nome original, mas mudou tudo o que se referia à cura pastoral, uma vez que, em 27-10-1963, foi assumida pelos Padres da Congregação da Santa Cruz; a igreja dos Sete Santos Fundadores, por sua vez, continuou a ser atendida pelos Padres do Sagrado Coração, mas mudou o nome: de 1945 a 1963 chamava-se igreja do Coração de Cristo Rei, e depois, igreja do Sagrado Coração de Jesus, nome que conserva até dos dias de hoje.
Quanto aos Servos de Maria, o dinheiro recebido na cessão da igreja de Boca do Mato foi investido na nova fundação em São Paulo. Os frades, por sua vez, tomaram rumos diferentes: frei Tiago Mattioli foi para a comunidade do Rio Comprido, e frei André Van Halder mudou-se para Turvo em 14-6-1945.[131]
Enquanto isso, a construção da igreja do Rio Comprido continuava em ritmo lento, mas finalmente, em 1947, frei Peregrino (Ugo) Poli podia afirmar exultante:
Em 1946 e nos primeiros meses deste ano os trabalhos de construção da igreja tiveram um progresso gigantesco. A segunda parte da igreja em construção está totalmente coberta, e a abside terminada interna e externamente: muito bonitas as cornijas encimando as paredes, as colunas encanaladas e os capitéis de estilo clássico.
Dia 7 de janeiro deste ano assinamos contrato para a decoração do forro do corpo central da igreja (que ainda deve ser aberto) e do arco do presbitério, feito em caixotões. Terminados os trabalhos, haverá um déficit bastante alto, mas isso não assusta, pois o povo do Rio Comprido ama o seu santuário, e no dia em que puder participar da primeira santa missa e das celebrações, acomodado na grande nave da sua igreja, mais do que diminuir, haverá de aumentar sua generosidade, cheio de satisfação espiritual.[132]
Em 21-9-1947, com os trabalhos quase concluídos, estando já pronto o revestimento interno da capela-mor, a igreja foi solenemente inaugurada, com a bênção do arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara (1894-1971). Na solenidade estava presente também o embaixador da Itália, Mário Martini. O jornal Correio da Noite enviou um repórter que entrevistou frei Peregrino Bellezze, então prior do convento local.[133]
A propósito, deve-se ter em conta que a composição da comunidade mudou com o passar dos anos: frei Tiago Mattioli voltou para o Acre e frei Gregório Dal Monte foi para o sul. Por isso, quando o Prior Provincial da Romanha, frei José Gherardi (1909-1961) visitou o convento naquele ano, os frades que o acolheram eram frei Peregrino Bellezze, frei Carlos Zucchini (1911-1993) e frei Fernando Marchioni. Ele pode admirar a arquitetura da nova igreja praticamente já acabada que, em 1952, frei Miguel Lorenzini tentou transformar em centro nacional de devoção a Nossa Senhora das Dores;[134] mas isso ficou sendo só um ideal. Mediante um decreto arquidiocesano de 15-9-1956, a igreja foi erigida em paróquia, tendo como primeiro pároco frei Tiago Coccolini.[135]
4.2 – Fundação das Servas de Maria do Brasil
Antes da chegada dos Servos de Maria, em 17-6-1917, nos arredores do Rio, a pedido do padre José Silveira da Rocha e com a autorização do bispo de Niterói, Dom Agostinho Francisco Benassi (1868-1927), Maria Cândida da Gama e Castro (1870-1945), natural de Bananal, Estado de São Paulo, fundou a primeira e única congregação servita feminina do Brasil, inicialmente denominada “Congregação das Servas de Maria Imaculada”. A obra mais antiga instituída foi o Orfanato São José, situado no território da paróquia de São Gonçalo, Niterói, exatamente onde padre José era pároco.
Ainda em 1917, com a aprovação do bispo, pedido foi encaminhado a Roma para que a instituição fosse reconhecida como congregação religiosa propriamente dita. A Santa Sé respondeu, exigindo como requisito prévio que a instituição se agregasse a uma Ordem já existente. Diante disso, o pároco escreveu ao Prior Geral dos Servos de Maria, frei Aleixo Lépicier, pedindo-lhe que enviasse algumas irmãs de carisma mariano agregadas à Ordem para ajudar o grupo nascente. O Prior Geral viu de bons olhos a nova fundação, mas preferiu adotar outro critério, como segue:
Primeiramente, agradeço a Deus que se serviu da obra de V. Rev.ma para propagar o culto à Virgem Santíssima, por meio da citada Pia Instituição. […] De minha parte, apraz-me fazer o que está a meu alcance para promover sempre mais o bem dessa pia associação. Cumpre-me, porém, fazer notar a V. Rev.ma que, não tendo sob a minha direta jurisdição nenhuma das congregações ou dos conventos de irmãs afiliadas à Ordem (uma vez que as irmãs da Ordem estão sob a jurisdição dos respectivos bispos), não tenho o poder de enviar-lhe irmãs da Ordem.
[…] Creio que o melhor seria que essa pia associação fosse agregada à Ordem, se este for o desejo das irmãs, […] mas independentemente de outras congregações já existentes e de outras regiões muito diferentes no idioma e nos costumes. Para isso, precisaria que V. Rev.ma e as irmãs da pia associação tomassem conhecimento do espírito da Ordem, de suas devoções, principalmente da devoção às Dores de Nossa Senhora, que é uma das características próprias da nossa Ordem. Para este fim, se me for solicitado, disponho-me a enviar-lhe os livros que podem ajudar para o caso. E uma vez conhecido o espírito da Ordem e suas devoções, se V. Rev.ma e as irmãs da pia associação desejarem agregar-se à Ordem, e com a autorização escrita do bispo, com prazer enviarei o diploma de agregação, com o qual as irmãs entrariam a participar das indulgências e dos benefícios espirituais da nossa Ordem.[136]
A proposta foi aceita sem hesitação e, em 14-4-1919, a cúria geral enviou os dezesseis livros seguintes, todos em italiano, muito apreciados na época: Vida de São Filipe Benizi; Vida dos Sete Santos Fundadores; Vida do B. Boaventura Bonaccorsi; Vida do B. Ubaldo Adimari; Vida do B. André Dotti; Vida de Santa Juliana Falconieri,Fundadora das Manteladas Servas de Maria; Guia de Monte Senário; Cerimonial da Ordem; Manual dos Irmãos Leigos; Manual dos Padres e Frades Clérigos da nossa Ordem; Manual da Ordem Terceira; Maria Co-redentora; A mais Linda Flor; O Lírio de Israel; Jesus Cristo Rei dos nossos Corações; As relações de Maria com o Santíssimo Sacramento; a Proteção de Maria na Hora da nossa Morte (em italiano e francês). Além disso, foram enviados também muitos santinhos de Santa Juliana e uma centena de outros santinhos mistos.[137]
A fundadora e suas sete primeiras coirmãs adotaram logo a espiritualidade, a regra, o hábito e o nome próprio da nossa Ordem, motivo pelo qual passaram a chamar-se “Servas de Maria do Brasil”, comunicando por carta, em 16 de agosto do mesmo ano, sua total adesão à Ordem. E, em 16-11-1919, foram oficialmente agregadas, mas sem nenhuma dependência jurídica dos frades da Ordem. Receberam o diploma de agregação que foi, porém, revogado em 1920, antes mesmo de entrar em vigor. O motivo foi que a situação não estava totalmente definida, uma vez que, pouco tempo depois, as irmãs entraram em atrito com o Pe. José Silveira da Rocha, considerado excessivamente rigoroso. Mais tarde, em janeiro de 1920, com a devida licença do cardeal arcebispo do Rio, Dom Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti (1850-1930), as irmãs mudaram-se para Jacarepaguá, na paróquia de Nossa Senhora de Loreto. Mas era necessário explicar o ocorrido. Por isso, o Prior Geral, frei Luís M. Tabanelli, em 10-8-1920, escreveu ao Núncio Apostólico no Brasil, Dom Henrique Gasparri, dando seu parecer a respeito:
Consta-me que foram encaminhadas a esta Nunciatura Apostólica as querelas que surgiram entre uma comunidade de irmãs de Niterói e o padre José Silveira da Rocha. Uma vez que o nosso ilustre predecessor, Rev.mo Pe. Aleixo Lépicier, a pedido delas e com a aprovação do Ordinário, lhes enviara o Diploma de agregação à Ordem, quando era totalmente desconhecida a existência de supracitadas querelas, agora que viemos ao conhecimento da situação, julgamos oportuno revogar o decreto de agregação.
[…] Todavia, uma vez que a referida comunidade de irmãs, transferida para a localidade de Jacarepaguá, nos pediu encarecidamente que emanássemos em seu favor um novo decreto de filiação à Ordem, ficaria vivamente grato à V. Ex.cia se, depois de tomar conhecimento do que ocorreu em Niterói, se dignasse comunicar-me se julga oportuna uma fraternal agregação das mesmas irmãs à nossa santa Ordem .[138]
Enquanto a Nunciatura levantava as informações solicitadas, a fim de poder emitir um parecer favorável, foi necessário fazer outro processo de agregação e buscar um novo diretor espiritual. O sacerdote que assumiu essa incumbência foi o Pe. Nino Minelli, mas, também desta feita, sob certos aspectos, a congregação sofreu algumas mudanças. Houve, por um lado, fatos positivos. Por exemplo, estabelecendo-se em novo endereço, as Servas de Maria do Brasil instituíram na Estrada da Freguesia, nº 1012, o Orfanato São José, que prestava relevantes serviços, e um colégio situado numa colina do mesmo nome, na altura do nº 36, perto da paróquia de Nossa Senhora de Loreto. Pouco depois, a fundadora, após emitir os votos, junto com suas primeiras coirmãs, procurou uma casa para acolher as órfãs. Com muito sacrifício, compraram um terreno na Estada do Capenha, n. 856, para onde transferiram o orfanato, que mais tarde se tornou o atual Colégio São José.
Em seguida, outras casas foram abertas nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e, mais tarde, na Bahia. O bispo de Caratinga-MG, Dom Carloto Fernandes da Silva Távora, aprovou com prazer os trabalhos para a fundação da Congregação que, neste ínterim, tinha aberto uma casa na sua diocese, em Santa Luzia do Carangola. Desta forma, em 1-3-1922, a congregação foi canonicamente reconhecida e, no dia 2 de maio seguinte, o Prior Geral, frei Luís Tabanelli, promulgou o novo decreto de agregação à Ordem. Em 4-11-1923, a fundadora recebeu das mãos do Núncio Apostólico, Dom Henrique Gasparri, o hábito da Ordem, assumindo o nome de Maria Cecília Juliana de São José. Pouco tempo antes, em 15 de setembro, Dom Carloto tinha aprovado as primeiras Constituições da Congregação.
Por outro lado, porém, o diretor espiritual foi novamente substituído. Isso aconteceu porque, em 1924, Dom Próspero Bernardi fez uma visita canônica à Congregação e fez algumas restrições, com as quais não concordou o Pe. Nino Minelli. Dom Próspero dirigiu-se então ao Núncio Apostólico, Dom Henrique Gasparri, manifestando seu parecer a respeito:
Recebi duas cartas do Rev.do Pe. Nino Minelli, nas quais se queixa do resultado desastroso – assim diz ele – que teria produzido a visita canônica que fiz às irmãs de Jacarepaguá. Se isso fosse verdade, peço que V. Ex.cia intervenha com sua palavra de autoridade para apagar essa triste impressão, caso não seja fruto de mera imaginação. As restrições que fiz são todas de ordem disciplinar e jurídica (falta de uma conveniente clausura, separação dos locais, partilha de ofícios), portanto, nada de difamante, sendo imperfeições que cessam ipso facto tão logo forem remediadas.[139]
A solução foi substituir Pe. Nino. Daí por diante a situação normalizou-se, conseguindo a Congregação organizar aos poucos todos os aspectos indispensáveis de uma vida religiosa feminina.
As Servas de Maria do Brasil tiveram um discreto crescimento nas décadas seguintes e, em 1990, contavam com quatorze conventos nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná, e cerca de setenta irmãs. Continuaram, porém, como congregação de direito diocesano.[140]
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O olhar para o sul do Brasil e as fundações de Turvo